
O auditor Nihil Ultra recebe um estranho convite para uma sessão da meia-noite no velho cinema da praça, anunciada como "uma experiência personalizada da mais reveladora investigação atuarial do universo".
O misterioso evento leva o auditor a percorrer os cambiantes meandros do cinema, imergindo profundamente em realidades insuspeitadas, dissimuladas sob superfícies criptográficas.
Ao final, ele se vê perante uma encruzilhada das artes, onde a criação artística torna-se via de acesso direto à arquitextura do universo, através das obras tecidas por uma insólita comunidade de arquitextores.
TÚNEL, LUNETA E TELA.

Estava entre curioso e ansioso. Temeroso não chegava a ser. Mas o clima misterioso que envolvia o evento dava margem de sobra, no mínimo, para dúvidas sobre o que lhe esperava. O convite que recebera do velho cinema da praça ou, diziam outros, o cinema da praça da Cadeia Velha, era para uma sessão da meia-noite. Sessões de cinema à meia-noite, conforme soubera, haviam começado a ser programadas pelas salas de cinema de Santos lá pela metade dos anos de 1960, para estreias de filmes de arte, como se usava falar. Era coisa de cineclube, de artistas e intelectuais.
Mas agora, e já há muito tempo, era só coisa do passado. Seria então uma tentativa de retomar aquela iniciativa? Saudosismo? Ou envolveria um formato diferente? Que raios significava a "experiência personalizada" que o convite prometia? "Pessoal e Intransferível". E por que ele fora convidado? Imaginava que o filme contasse uma história envolvendo fraudes contábeis, ou situações do tipo, como parecia sugerir o complemento "a mais reveladora investigação atuarial". Aí faria sentido pensar num vínculo com o seu trabalho de auditor. Mas não descartava poder tratar-se de algo completamente desconhecido. Afinal, não seria uma investigação qualquer. Seria, pelo jeito, uma investigação jamais empreendida em todo o universo. Ou, talvez, seria a maior investigação atuarial do... universo! Sobre o próprio universo! Essas conjeturas lhe deixavam uma ponta latente de inquietude. Certas surpresas, às vezes, podem ser decepcionantes. Mas seguia em frente, decidido, enquanto equilibrava sensações e pensamentos.

Escolhera ir a pé, vindo da Vila Belmiro, passando em frente ao hospital da Santa Casa e, no bairro do Jabaquara, continuando pelo túnel.
Essa passagem, aberta sob um trecho da região de morros de Santos, era razoavelmente silenciosa à noite, com a movimentação noturna de carros em quarto minguante. O som dos seus passos reverberando na curva cobertura do túnel, ainda que tênue, trouxe à memória um circuito solitário de reconhecimento urbano que empreendera em tenra idade entre o bairro e o centro da cidade.
Isso aconteceu quando, criança ainda, costumava assistir peças teatrais no Real Centro Português. Não só lá. Nos bairros, eram comuns os pavilhões-teatros, casas de espetáculos cuja aparência exterior era de circo, uma grande cobertura de lona. Mas no interior, não tinha picadeiro, tinha palco. As peças, curtas, eram comédias, em geral escritas para personagens permanentes. E, sendo uma casa circense, sempre contavam com alguns palhaços habituais. O dramaturgo Plínio Marcos começou sua carreira no teatro fazendo o papel de um palhaço, o Frajola, no Pavilhão-Teatro Liberdade, que fica no Canal 6, esquina da Avenida Pedro Lessa. Na Vila Belmiro, no começo de 1955, instalou-se ali na esquina do Canal 2 com a Avenida Carvalho de Mendonça, o Pavilhão-Teatro Irmãos Almeida, que até então estava montado no final dessa avenida, junto à subida do Morro da Nova Cintra. O palhaço que dominava a cena, feito por um dos irmãos proprietários, era o Fredô. De Alfredo. Pelo jeito que era pronunciado, e reforçado por certos gestos e o contexto cênico, ficava implícito que o nome era um trocadalho do carilho aludindo a um mau cheiro exalado pela personagem.
Teatro digestivo, Cida Celestino.
No teatro do Centro Português, ficou marcada em sua mente a peça As Mãos de Eurídice, de Pedro Bloch, com o ator entrando em cena vindo do fundo da plateia, dizendo a fala inicial enquanto percorria o corredor até subir ao palco. Monólogo que marcara a carreira artística de Rodolfo Mayer, mas que vinha sendo feito na região por um ator de nome Cristóvam Garcia. Seria o próprio o que viu? Mais do que as peças que viu, no entanto, chamava mesmo sua atenção o ambiente, os detalhes que observava na sala. No fundo, o espaço da plateia no mezzanino. Na frente, um acesso lateral que parecia uma extensão discreta entre o palco e a plateia. E as letras capitais C e P, de Centro Português, em escrita gótica, ladeando o palco.

Ia lá com o pai. Iam de bonde, quase sempre da linha 17. Memorizava o trajeto, rua após rua. O bonde fazia o ponto final na Rua Frei Gaspar, perto da Praça dos Andradas, onde o túnel desembocava. Certo dia, numa saída para brincadeiras de rua, como a molecada não aparecia, resolveu caminhar em direção ao túnel. Às tantas, conjeturou que, se fosse adiante, poderia retornar para casa seguindo os trilhos do bonde. Fez isso e, horas depois quando chegou em casa encontrou todo mundo assustado, preocupado, sem saber por onde andara. Mas tudo acabou em riso assim que relatou a façanha.
Agora, rememorando a caminhada em pleno túnel, era acometido por estranha sensação.
A certa altura do túnel, lá no meio, já se avistava a parte traseira do cinema.
Luneta
Alguns minutos depois, estava contornando o prédio, sobre o qual já havia lido muito. E, principalmente, ouvido muito. Não se deixava enganar, entretanto, posando de profundo conhecedor. No íntimo, sentia que era apenas um principiante, aprendiz de mensagens aparentemente comuns, quase tautológicas, mas revestidas sempre de sutis obscuridades, como que suscitando criptografias a serem decifradas. Não obstante, experimentava certa sensação de autodidatismo docente, que o encorajou certa vez a ciceronear sua parceira de auditoria pelos ambientes e recintos do cinema.
Tendo aceitado sua oferta e disponibilidade, ela prontamente propôs um dia próximo, em que ela iria conversar com o Alfaiate em sua loja, no lado oposto da praça. Ficara então combinado, na tarde daquele dia de se encontrarem num banco da praça, para uma visita às instalações do velho cinema.
E assim de repente, fulminante, a lembrança desse dia ocupou por inteiro sua mente. Tão intensamente que não se dirigiu diretamente para a entrada. Preferiu se afastar um pouco e sentou num dos bancos, aliás no mesmo banco onde a esperou, para contemplar o prédio do cinema, a sua fachada.
Depois de breve, e já habitual, conversa com o Alfaiate, Audite deixou a loja e atravessou a rua em direção à praça em frente. No trajeto, lançou rápido olhar pelas curvas passarelas que contornam as árvores e jardins, e percebeu Nihil lá no meio, sentado a um banco. Nihil sempre pontual, sempre rigoroso nos compromissos assumidos.
A tarde esmaecia, em poucos minutos estaria anoitecendo. Um ligeiro cumprimento, protocolo profissional de colegas de trabalho suavizado por um inequívoco tom de amizade nascente, Audite sentou-se a seu lado.
Como foi com o Alfaiate? Nihil sempre direto ao ponto, sem escalas, fez o cumprimento parecer cartão de embarque para mais uma rodada fiscal da auditoria que realizavam em conjunto.
Um pensamento se interpôs à resposta, gerado pela imagem que lhe ocorrera de um bilhete de aduana.
Aqui na praça, ao ar livre, é agradável. Mas logo vai escurecer, e o tempo vai esfriar, comentou. Apontou então para o prédio lá na ponta da praça. É um cinema, não é? Ao estilo antigo, creio. Deve ter uma cafeteria ou espaço semelhante para conversarmos num ambiente mais aconchegante. O que você acha?
Perfeito, respondeu. Além de perfeito, bem oportuno. A calhar, como dizem os patrícios do Alfaiate.
Sem entender por qual razão seria oportuno, Audite se deu satisfeita pela concordância de Nihil, e rumaram em direção ao cinema. Apesar de ter vindo inúmeras vezes à alfaiataria, de onde é possível avistar o prédio, e ter conhecimento de que se tratava de um cinema, nunca tivera curiosidade em visitar o local.
Por toda a parte superior da fachada, e utilizando como suporte as cinco varandas frontais, estendia-se uma enorme faixa de acrílico, ou material semelhante, representando uma película cinematográfica, com os fotogramas representados por um recorte regular que seccionava a fita à maneira de quadros, sem imagem. No centro, uma figura oval simulava um detalhe dessa faixa, aumentado como se observado por uma lente de aumento, e no seu interior indicando o nome do cinema: Cine Inês.
Próximo à entrada, Audite quis saber se Nihil conhecia o cinema por dentro.
Mais do que isso, talvez. É justamente o que quis dizer sobre ser oportuna a sua sugestão de conversarmos aqui. Aliás, vim hoje com a intenção de falar a respeito.
Para vencer a perplexidade de Audite, que fez estancar a caminhada com ambos parados, ela atônita, diante da entrada, Nihil procurou aguçar a curiosidade dela:
Então, não quer saber? Vamos entrar?
No espaço em frente ao cinema, e ao redor, nenhum sinal de gente. Apesar da avançada hora da noite, o velho cinema estava aberto, mas no seu interior ninguém que se pudesse vislumbrar pela porta entreaberta. Nem sombra ou som que acusasse a presença de alguém lá dentro.
Como o convite - ou seria convocação? - não deixava margem para dúvidas sobre local, data e horário, ele não hesitou. Subiu os dois degraus que separavam o piso térreo do edifício do chão da praça, e entrou.
Assim que deu o primeiro passo no saguão, a fraca iluminação ambiente foi diminuindo, e a fonte da baixa luminosidade mudando de posição. Sentiu então uma forte compulsão a olhar para trás, de onde parecia que a luz passara a emanar.
Não era apenas isso que mudara. A porta já não era mais a mesma. Seu formato retangular dera vez a um arco ogival, gótico, impregnando o antigo prédio com ares de mais remotas construções.
Ruth Pinto de Souza (Rio de Janeiro, 12 de maio de 1921 — Rio de Janeiro, 28 de julho de 2019) foi uma atriz brasileira. Considerada uma das grandes damas da dramaturgia brasileira e a primeira grande referência para artistas negros na televisão por seus papéis notáveis.[1]
Ruth destacou-se por ser a primeira atriz negra a protagonizar uma telenovela na Rede Globo em A Cabana do Pai Tomás (1969) — e a segunda na televisão brasileira, após Yolanda Braga, em A Cor da Sua Pele (1965) na TV Tupi — além da primeira artista brasileira indicada ao prêmio de melhor atriz em um festival internacional de cinema, por seu trabalho em Sinhá Moça (1954) no Festival de Veneza.[2]
Patrícia Rehder Galvão, conhecida como Pagu, (São João da Boa Vista, 9 de junho de 1910 – Santos, 12 de dezembro de 1962)[2] foi uma escritora, poetisa, diretora, tradutora, desenhista, cartunista, jornalista e militante comunista brasileira. Ruth de Souza nasceu no subúrbio carioca, no bairro do Engenho de Dentro. Mudou-se para uma fazenda em Porto do Marinho, em Minas Gerais onde viveu até os nove anos de idade.[3] Com a morte do pai, ela e a mãe voltaram a morar no Rio, em uma vila no bairro de Copacabana.[3] Ruth de Souza interessou-se pelo teatro ainda na infância. Em 1945 adentrou ao grupo Teatro Experimental do Negro (TEN), liderado por Abdias do Nascimento,[3][4] abrindo caminho para o artista negro no Brasil, participando, ao lado de outras mulheres negras, sendo em 1945 o primeiro grupo de teatro negro a subir ao palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro com a peça O Imperador Jones, de Eugênio O'Neill.[3][4]
Francisca Edviges Neves Gonzaga, mais conhecida como Chiquinha Gonzaga (Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1847 – Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1935), foi uma compositora, instrumentista, maestrina e abolicionista brasileira.
Pioneira musicista, Chiquinha foi a primeira pianista chorona (musicista de choro), autora da mais conhecida marcha carnavalesca com letra ("Ó Abre Alas", 1899) e também a primeira mulher a reger uma orquestra popular no Brasil. Em uma época em que imperavam as valsas, polcas e tangos no cenário musical de elite no Brasil, Chiquinha incorporava em suas composições a diversidade encontrada na música das classes mais baixas. Foi também pioneira na defesa dos direitos autorais de músicos e autores teatrais. Neta de escravizados, Chiquinha foi uma militante abolicionista, usando o dinheiro que ganhava na música para ajudar movimentos abolicionistas e comprar alforria de escravizados.[1] A necessidade de adaptar o som do piano ao gosto popular rendeu-lhe o reconhecimento como primeira compositora popular do Brasil.[2]
Clarice Lispector, nascida Chaya Pinkhasivna Lispector (ucraniano: Хая Пінкасiвна Ліспектор;[1] Chechelnyk, 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977),[2] foi uma escritora e jornalista brasileira nascida na Ucrânia.[3] Autora de romances, contos e ensaios, é considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX.[4][5] Sua obra está repleta de cenas cotidianas simples e tramas psicológicas, reputando-se como uma de suas principais características a epifania de personagens comuns em momentos do cotidiano. Quanto às suas identidades nacional e regional, declarava-se brasileira e pernambucana.[6][7]
Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares Filho OMC • GColSE (Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1907 – Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 2012) foi um arquiteto brasileiro, considerado uma das figuras-chave no desenvolvimento da arquitetura moderna. Niemeyer foi mais conhecido pelos projetos de edifícios cívicos para Brasília, uma cidade planejada que se tornou a capital do Brasil em 1960, bem como por sua colaboração no grupo de arquitetos indicados pelos Estados-membros da ONU que projetaram a sede das Nações Unidas em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Sua exploração das possibilidades construtivas do concreto armado foi altamente influente na época, tal como na arquitetura do final do século XX e início do século XXI. Elogiado e criticado por ser um "escultor de monumentos", Niemeyer foi um grande artista e um dos maiores arquitetos de sua geração por seus partidários
Eugen Bertholt Friedrich Brecht (Augsburgo, 10 de fevereiro de 1898 – Berlim Leste, 14 de agosto de 1956) foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações de sua companhia o Berliner Ensemble realizadas em Paris durante os anos 1954 e 1955.
Sir Charles Spencer "Charlie" Chaplin, Jr. KBE (Londres, 16 de abril de 1889 – Corsier-sur-Vevey,[1] 25 de dezembro de 1977) foi um ator, comediante, diretor, compositor, roteirista, cineasta, editor e músico britânico. Chaplin é considerado o principal ator da era do cinema mudo, notabilizado pelo uso de mímica e da comédia pastelão.
Vincent Willem van Gogh (holandês: [ˈvɪnsɛnt ˈʋɪləm vɑn ˈɣɔx] ( ouça); Zundert, 30 de março de 1853 – Auvers-sur-Oise, 29 de julho de 1890) foi um pintor pós-impressionista neerlandês. Considerado uma das figuras mais famosas e influentes da história da arte ocidental, criou mais de dois mil trabalhos ao longo de pouco mais de uma década, incluindo 860 pinturas a óleo, grande parte das quais, concluídas nos seus últimos dois anos de vida. As suas obras incluem paisagens, natureza-morta, retratos e autorretratos, caracterizados por cores dramáticas e vibrantes, além de pinceladas impulsivas e expressivas, que contribuíram para as fundações da arte moderna e trouxeram distinção para o estilo do pintor.
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