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Arquitextura


No segundo semestre de 1970, acontecia em Santos o III FeMPo (Festival da Música Popular), no qual eu havia inscrito uma canção (Sinfonema) que fora selecionada como concorrente.


Em setembro desse ano, comecei a participar dos ensaios do Madrigal Ars Viva.


Alguns integrantes do coral (Roberto Martins, Ema Ferreira Basile e Antônio Barja Filho) haviam feito parte do júri de seleção do festival.


Com isso, acabou sendo de conhecimento da direção artística a minha participação no evento, o que resultou num convite para que eu escrevesse uma peça para o coral. Daí surgiu Gravitando, minha primeira experiência de compor para coro.


Na mesma época, em conversas com Roberto Martins, que já vinha compondo para coro, ele me disse ter escrito uma peça para vozes, mas não havia encontrado uma poesia que se ajustasse às linhas melódicas, expressando ainda a intenção pretendida, de algo místico, espiritual, transcendental. E perguntou se eu me disporia a apreciar a partitura e, quem sabe, a partir dela, escrever um texto próprio.


Bem, era outra experiência interessante. Eu já estava habituado a escrever textos a posteriori para melodias que eu compunha, sem letra. Ou seja, buscando palavras que se ajustassem à melodia, amoldando-as às notas e ao fraseado. Mas seria a primeira experiência de fazer isso numa estrutura contrapontística. E de elaborar o texto não como criação literária apenas, mas que surgisse de potenciais configurações vislumbradas a partir da disposição musical.


Isso me levou, por exemplo, a sugerir ao compositor alguns divisis nas vozes, em que duas palavras de sonoridade semelhante fossem cantadas simultaneamente, como em "vitral" e "cristal", e também em "vidro" e as duas últimas sílabas de "dúvida". Quais ecos distorcidos numa arquitetura ampla como nas igrejas medievais (de onde me veio o título: Arquitextura).


Também ocorreu, em vez de fazer um texto único ser cantado por todas as vozes (em homofonia ou contraponto), atribuir textos diferentes para as vozes, que caminhassem juntos na narrativa musical. É a ideia do dueto central, em que uma voz se atém à frase "arca de barro e cal" e a outra desenvolve uma ideia mais extensa (vidro, arquivo vivo... macro-arquivo de cristal). E, em concepção oposta, fazer um termo como "arqui-raque" ser exposto em sequência pelas quatro vozes do coral, cada qual pronunciando uma das sílabas.


Ao final do texto, ao escrevê-lo no papel, como poema, percebi que, colocando os versos em alinhamento centralizado (o que fiz na velha máquina mecânica de datilografia), a forma visual me lembrava vagamente ora um trecho de coluna, ora a haste de um cálice, o que me sugeria a ambientação mística de um templo, celebração religiosa, e assim adotei essa disposição gráfica.




Anos depois, Roberto Martins, por questões técnicas e estéticas, fez pequenas alterações na partitura, como defasagem entre vozes e notas de passagem. A partitura exibida no vídeo está conforme àquela a partir da qual eu escrevi o poema, acrescida apenas de um grande acorde microtonal, que não havia no manuscrito original. Numa audição atenta, é possível perceber no vídeo a seguir trechos que não constam da partitura exibida na tela.



A peça estreou no Teatro Municipal de São Paulo em 6 de novembro de 1977, com o Madrigal Ars Viva regido pelo compositor. O registro fonográfico é do disco (álbum duplo em CD) Música Nova para Vozes, que o Madrigal Ars Viva produziu em 2000.

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