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Cantos Corrientes


No outro extremo de Corrientes tres cuatro ocho, endereço mais famoso da avenida, tu sai da estação Lacroze em Corrientes seis mil e tantos, sem endereço a precisar. Sem crepúsculo interior, pero a media luz del sol. Vencido o espanto do longo traslado subterrâneo entre Paulista e Corrientes, tu anda um pouco, alrededor. Cansa na passagem pela Plaza Los Andes, tem um banco junto à calçada. Senta. Cansaço. Deita. Um bom tempo ali, olhos fechados, então... clique.


Tu abre os olhos, clique. Dois adolescentes te miram.

- Que pasa?, pergunta o de óculos escuros.

- El tiempo, tal vez, responde o fotógrafo.

Falam entre si, mas falam contigo, certamente. Tu te levanta, volta a sentar no banco. Esfrega os olhos.

- Mucho gusto, cumprimenta, te apresenta: Gil.

Tu percebe, ao acabar de responder, que tu falou em espanhol. O jota agá aspirado, Jil, Hil. Infeliz ideia. Aí tu considera remendar o equívoco linguístico.

- Mi nombre es Gil, tu faz um meio reparo, usando o espanhol mas falando teu nome em português. E repete, acrescentando o segundo nome: Gil Nuno.

Pior a emenda que o soneto. Dizem que espanto, ou assombro, é a busca filosófica última de todo metafísico de Tlön, para além da verdade e da verossimilhança que, na verdade, pura verdade, não interessam. Tal a reação dos dois observadores, parados, atônitos, à tua frente.

- Gil Nuñez?

O incipiente início de diálogo te leva a pensar na fala de Lanza como circunstancial língua base da iminente conversa, mistura de português e espanhol, que inclui inglês, francês e, eventualmente, outros ramos do latino como o italiano, além do anglo germânico saxão.

- Si, tu aquiesce, aderindo ao presumível idioma em andamento. Equivocadamente presumível. Mais tarde tu vai perceber que se trata do oposto, uma fala a partir da qual "desaparecerão o inglês, o francês e o simples espanhol" e "o mundo será Tlön".

- Gauchito Gil?

No, no, não, de onde veio essa ideia?. Antes que a conversa se complique ainda mais, tu resolve retomá-la do ponto anterior, e tenta corrigir, de modo brincalhão, dizendo que teu nome é Gil Nuno, e não Gil Nunes. Que Nunes é plural, e tu é um só, teu nome, Nuno, está no singular. Mas não parece surtir efeito. - Si, sí, Gil Nuñez también és un solo hombre, concorda o fotógrafo, pero su nombre que conoce el pueblo es Gauchito Gil. Mais um esforço, em vão:

- Soy brasileño, pero gaucho, no ... Percebendo ter falado em espanhol, tu retorna, em tímido português: Gaúcho, não. Paulista. De Santos.

- Si, si, Santo Gauchito Gil, reagem os dois, com maior espanto e assombro.

Antes que a conversa vire o diálogo anedótico da velhinha quase surda que ouve uma palavra e entende outra, tu vira o jogo da velha, começando nova rodada, em bom e sonoro português brasileiro: - E os dois, para onde vão? O de óculos escuros permanece impassível, mas o fotógrafo responde, depois de alguma hesitação, que a intenção era percorrer a pé a Avenida Corrientes, em direção à Catedral. - Fica muito longe daqui?, tu pergunta. - Mucho, ele responde, explicando que iriam andar até se cansar, e então tomariam o metrô, para o trecho que faltasse. - Posso ir com vocês? tu te convida. Ele responde afirmativamente, mas é interrompido pelo de óculos, que até então parecia não estar prestando atenção à conversa, o rosto voltado para outro lado. - Y el Gauchito Gil? Pronto, vai recomeçar a confusão, tu pensa. Buscando evitar que isso aconteça, tu encaminha uma digressão clássica: - E então, vamos andando?, tu tenta retomar a conversa do ponto do autoconvite. Sim, disse o fotógrafo, ressalvando que antes iriam até o centro da Plaza Los Andes. Para quê?, tu pergunta. E ele responde que precisam confirmar algo, e insiste que tu vá junto. Ao iniciar a pequena caminhada, tu percebe que o de óculos lida com algum tipo de deficiência visual, devido ao apoio que lhe presta o fotógrafo. Logo, param em frente a uma cabana, no meio da praça. É o santuário de Gauchito Gil, esclarece o fotógrafo, percebendo tua perplexidade. - Pensei que vocês estavam se referindo a mim, quando me apresentei há pouco. Por supuesto, disse o fotógrafo meio sorrindo, meio sério, e começou a explicar do que se tratava. Ou do que não se tratava. Pois não era um santo oficial da igreja, era uma espécie de santo do povo. E se pôs a contar a história. Ou melhor, uma das histórias, pois havia várias versões. Uma delas dizia ser um assaltante que roubava animais, comandando um grupo de ladrões. Preferiu aquela em que era um simples trabalhador rural, um campesino. Seu erro, nessa versão, foi ter caído nas graças de uma viúva rica, e na desgraça dos irmãos dela e de um oficial de polícia que a cortejava. Na primeira oportunidade, despacharam o indesejável para a guerra, esperando que as batalhas cumprissem a tarefa de libertá-los de sua inconveniente presença. Como isso não aconteceu, aproveitaram sua deserção de uma dessas obrigações militares forçadas para caracterizá-lo como criminoso, e o mataram. - E como se tornou um santo?, tu pergunta. Pois é, continua o fotógrafo, dizendo que santo Gauchito Gil nasce a partir do momento em que morre o campesino Antonio Mamerto Gil Nuñez. Bem, aí tu sentiu que havia realmente algo muito estranho no ar. Tu nem prestou mais atenção na continuação da história. Uma palavra aqui, outra ali, te permitiu entender que, antes de morrer, o gauchito lançou uma predição sobre a saúde do filho de seu algoz. E que o carrasco, que faria jorrar o sangue de um inocente, deveria pedir ao espírito de sua vítima pela cura do filho. A predição se consumou, e o povo transformou Gauchito Gil em santo. - Puede ser?, perguntou o fotógrafo ao amigo. O outro resmungou algo, quase inaudível, e ele respondeu que sim, de perfil, como suspeitara ao fotografá-lo deitado no banco. Estavam seguramente comparando as feições de Gauchito Gil com a dele. Outro detalhe estranho: entre os quadros que retratavam o santo, nenhum deles o mostrava de perfil. Resolveu dar um basta naquilo: - Vamos, então, voltar para a avenida? No caminho de volta, uma suspeita inusitada cresce dentro de ti. E tu começa a fazer como que um esquadrinhamento visual dos rostos de teus parceiros de caminhada. Uma espécie de reconhecimento de identidade. Em dado momento, tu já não tem dúvida. Há uma semelhança muito grande dos traços do amigo do fotógrafo, o cego, com o semblante de Jorge Luís Borges, a quem tu acabaste de oferecer o teu livro, em evento realizado pouco antes no MASP, na Avenida Paulista, em São Paulo. O que te deixa perplexo, pois os Jorges com que te encontraste nesses dois momentos, defasados em algumas horas apenas, apresentam uma diferença de cerca 70 anos. Na passagem paulista do MASP, tu estava diante de um Jorge de 86 anos. Ali, tu te via perante outro Jorge, de aproximadamente 15 ou 16 anos. Mas certamente eram a mesma pessoa. E o colega dele, o fotógrafo, poderia ser Casares, de quem tu não tem qualquer memória visual. O escritor Adolfo Bioy Casares, interlocutor de Jorge no relato de Tlon, Uqbar, Orbis Tertius. Tu resolve, então, lançar uma provocação, que pudesse surpreendê-los e revelar a verdade dessa suspeita. E, sem que o esperem, após um longo silêncio de caminhada, tu irrompe numa saudação: - Salve, Jorges.




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