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Passagem Paulista


No dia 14 de agosto de 1984, Jorge Luís Borges falou e conversou com o numeroso público que lotou o grande auditório do MASP, na Avenida Paulista, em São Paulo. No meio do evento, o bibliófilo José Mindlin presenteou-o com uma edição rara de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Borges deixou o recinto sob fortes aplausos, andando pelo corredor central do auditório, acompanhado pela secretária Maria Kodama, que levava consigo, sob o braço, dois livros: o de Euclides da Cunha e o teu. Fazia exatamente uma semana que tu tinha retirado da gráfica os exemplares de No Olvido do Tempo / No Ouvido do Tempo. Uma história pontuada pela imaginação de Borges, pelas memórias do tempo futuro, pelas desmemórias de Tlon, Uqbar, Orbis Tertius. E pela figura onipresente do outro, sentado em um banco de uma praça em Genebra, ou em uma sala ou outro lugar qualquer, por que não nos jardins de Vila Serena, nos campos de Itaipava, na serra de Petrópolis? Ou frente à praia de Icaraí, em Niterói? Tu pega um exemplar. Basta um. Escreve algumas palavras sobre a imagem de uma noite unânime evocada por Borges. Então, tu entra em um ônibus e sobe a Serra do Mar. Tu chega no MASP a tempo de assistir ao encontro. Mas já não há assento vago na plateia. Tu passa por gente em pé nas laterais, e te esgueira até a pequena escada que se estende por todo o proscênio do palco. E tu te acomoda sentado em um degrau, ao lado de muitos que dos degraus fizeram suas poltronas. Dali tu acompanha as palavras de Borges, um breve prelúdio de lembranças logo seguido por larga tertúlia com a platéia. Sem te atrever a entrar nesse emaranhado verbal, tu prefere esperar pelo momento em que se abra a porta por onde tu gostaria de passar, ainda que por efêmero contato, ao mundo daquele terceiro orbe, em que as memórias não se apegam às coisas, e deixam que as coisas se tornem únicas em cada momento. E o momento chega quando a oferta de Mindlin desloca as atenções para o meio do auditório, de onde partira em alto e bom som. Enquanto se prolonga esse instante derivativo dos olhares, tu aproveita, te ergue rápido do degrau, segue até o canto da mesa em que está sentada Maria Kodama, pede licença, polidamente, e oferece o teu livro, referindo o tema da dedicatória que te inspirou a escrevê-lo. Ela aceita de bom grado, com ligeiro sorriso, tu agradece e volta para o degrau. Dali tu vê, ao final, Borges e Kodama descendo os degraus, e quando começam a atravessar lentamente o corredor central, tu te levanta e os segue pelo corredor lateral. Saindo do MASP, tu desce a estação MASP-Trianon e pega o metrô em direção à interligação com o ramal Norte-Sul, que te levará ao Jabaquara e ao ônibus para Santos. À medida em que o trem avança sob o solo, tua memória se percebe como um fluxo do teu corpo que passa de um momento para o próximo, retomando a identidade a cada instante que passa, na passagem para o terceiro orbe, outra terra simultânea e diversa. Então, o trem faz parada em uma estação, onde se detém como estação terminal. Tu sai, e logo uma placa se coloca diante de ti: F. Lacroze. Tu sobe as escadas em direção à superfície, até chegar ao topo, e à rua, onde outra placa informa onde foste parar: Avenida Corrientes.

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