
Era já uma figura lendária, mítica. Não se questionava mais a natureza evanescente do Anjo do Guarda-Livros, como costumavam se referir àquela criatura, porque se manifestava exclusivamente para ele, o contador. Havia indícios muito fortes de sua presença. Ou, melhor dizendo, de suas diáfanas aparições. Constatadas, em variados graus de vislumbre, por imenso contingente de pessoas, cujos testemunhos apresentavam apurada semelhança descritiva.
Mas, como sói acontecer, chega um momento em que a crença no fato, ou certeza sobre a natureza do fenômeno, é abalada por uma dúvida emergente. Às vezes um detalhe, sutil elemento que se insere no que era líquido e certo. E instaura uma provável, ou mesmo apenas possível, divergência sobre a percepção consensual.
Foi o que aconteceu num dia em que o contador precisou fazer uma visita pessoal a um de seus clientes, a alfaiataria Domínio do Fato. Foi quando surgiu a grande dúvida. E não apenas para ele, o contador, mas também para todos os que já aceitavam o fenômeno sem contestação. Qual era, afinal, a natureza do Anjo do Guarda-Livros? Seria um anjo, realmente? Até então, chamá-lo de anjo soava mais como uma troça com a aura de mistério que emanava de um conceito religioso.
Para o contador, entretanto, o impacto foi intensamente, incomensuravelmente mais forte. Jamais imaginaria que "num dia claro de verão", ele "pudesse ver para sempre", ao ser atingido pela simples imagem de um guarda-chuva.
Era final de tarde de um dia ensolarado. Desde manhã cedo o céu bem aberto, com pouquíssimas nuvens. Na rua, saindo do escritório, percebeu ter esquecido de trazer o guarda-chuvas, que costumava carregar pra lá e pra cá, nos percursos que fazia do escritório às empresas clientes. Conseguiu vencer a compulsão do hábito e, confiante no tempo, resolveu ir a descoberto.
Algumas quadras adiante, entretanto, a meio caminho da praça onde ficava a alfaiataria, foi surpreendido por forte trovão. Naquele curto intervalo de tempo, o céu mudara, já não era o mesmo. Escurecera, encoberto por nuvens densas. E, antes que pudesse esboçar uma reação preventiva, despencou uma chuva com jeito de jorro torrencial. Tentou achar uma marquise, um abrigo qualquer... nada. As construções em volta não ofereciam mínima proteção. Algumas pessoas que estavam por ali correram para as ruas próximas, em busca de reentrâncias nas paredes dos prédios.
O contador, ao contrário desses, ficou parado, paralisado. Prestes a proferir um "valha-me Deus", eis que se fez ouvir a voz já familiar do anjo. Voz que ecoava apenas no ouvido interno do contador. Dizendo, em resposta à súplica implícita no "valha-me Deus":
- Tu bem sabe, ou devia saber, que isso não é comigo. Sou só um mensageiro. Nada mais que isso.
Mal iniciada a fala, pairou por cima dos ombros do contador um grande guarda-chuva. As poucas pessoas que ainda permaneciam no local não ouviram as palavras do anjo. Não tinham acesso às manifestações sonoras, internalizadas no contador. E desta vez também não viram o anjo. Mas perceberam a imagem do guarda-chuva. E ficaram estupefatas.
Fosse lá o que fosse, imagem, holografia, objeto, o contador imediatamente empunhou o cabo do guarda-chuva. E a voz do anjo retomou a fala:
- Tu bem sabe, ou devia saber, que isso não é competência da minha alçada, calçada, camada. É de outro patamar.
Então, escorrendo pela água da chuva que caía, uma espécie de canto se fez ouvir na sua cabeça, no seu corpo, percorrendo a pele. Como se as gotas pluviais entrassem pelos seus poros, ressoando, chovendo música em suas faces. Uma melodia cantando poucas palavras, agitadas por um pincel invisível que as jogavam a esmo em meio a manchas lançadas ao acaso na superfície do guarda-chuva. E, na cobertura, para além das varetas, palavras inscritas, não ditas, traziam implícita a mensagem que o anjo portava. Não haveria a visita técnica, profissional, à alfaiataria. Sendo mais preciso: não haveria visita à alfaiataria. O encontro com o alfaiate seria no prédio do outro lado da praça.
Urdidura em curso.
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