Era uma figura discreta, apesar do porte avantajado, do corpo desconjuntado de moleque mal chegado à adolescência. Vinha devagar, aproximava-se de um grupo de pessoas em animada conversa, e se postava silencioso atrás de alguém. Ficava ali, às vezes horas a fio, ouvindo intermináveis discussões sobre futebol, piadas nem sempre engraçadas, e desinteressantes relatos do cotidiano de cada um. Volta e meia, a pessoa atrás da qual ele parava, e da qual parecia se projetar feito sombra viva, irrompia irritada. Sai prá lá, Anjo. Já tenho quem me guarde, não preciso de mais um. Vê se desgruda, Anjo. Desguarda.
Magoava-se com isso, sem dúvida. Mas não se queixava da rudeza. Apenas continuava em sua posição. Às vezes a roda se desfazia, e outros grupos menores se formavam, na esquina, ao lado da Banca do Distinto, na mureta do Bar do Bardo, na calçada perto da sarjeta, ou até do outro lado da rua, mais para a frente, onde ficava a Banca Rota. Ele se deslocava também, acompanhando em geral o grupo que lhe era menos hostil. Não parecia se importar em se sentir acolhido. Bastava que sua presença passasse desapercebida. Quando nem com essa piedosa indiferença era agraciado, distanciava-se e retornava para casa, em um passo vagarosamente cadenciado, tronco e cabeça gingando, balançando, ora para a direita, ora para a esquerda.
Estava apenas exercitando sua grande vocação: a observação e o registro do que via, ouvia, sentia. Quando começou a trabalhar, sua habilidade o encaminhou naturalmente para funções secretariais, redator de atas, apontador, foi convocado para inúmeras eleições, atuando como mesário. Tornou-se também mesário oficial de ligas esportivas, zeloso guarda-livros dos lances de atletas, tanto os geniais como os medíocres, igualmente assinalados em minuciosos e precisos lançamentos nas súmulas dos jogos.
Se surgia alguma dúvida sobre o que realmente havia acontecido, era imediatamente convocado para prestar depoimento. Não havia ainda o recurso do vídeo, do tira-teima. Mas, em vez de relatar impessoalmente os fatos que registrara, encarava a pessoa que estava no centro da questão, e falava diretamente para ela, como se contasse a história. Mais do que isso, como se fizesse essa pessoa ir se lembrando de cada momento do fato. Na concordância verbal, além do sotaque, sua fala traía a origem santista: então, tu saiu pela esquerda e, antes de pegar a bola, deu um cutucão na perna do marcador. Ninguém duvidava, nem se admitia contestação.
Aos poucos, a fama de "observatório humano" se espalhou de tal modo que já não se podia desvincular o processamento de registros históricos da figura do Anjo. Infelizmente, o reconhecimento social de sua habilidade não foi acompanhado com agilidade pela incorporação de seus serviços aos apontamentos de instituições oficiais. O cartorário, o tabelião, o amanuense, o escrivão, talvez por receio de perderem espaço profissional, todos eles se revelaram reticentes quanto ao puro aproveitamento, ou ao humilde aprendizado, da técnica do Anjo.
A única corporação que, rendendo-se à evidência, começou a estudar como trazê-lo para a confraria foi a dos guarda-livros, como eram denominados antigamente os contadores, ou contabilistas. Os escritórios de contabilidade se reuniram várias vezes em suas associações e sindicatos, durante inúmeras e demoradas sessões e assembleias, mas, apesar da intenção geral, tiveram sérias dificuldades para chegar a um acordo sobre como conduzir o que seria uma marcante transição para outro modelo e metodologia das ciências atuariais.
A essa altura, já se dizia que ele desenvolvera habilidade de prever o futuro, quase como um precog, aquele sensitivo de Minority Report, conto de ficção-científica de Philip K. Dick. Não se tem certeza disso, claro. Ou melhor, nunca se pode provar. Como também nunca se pode provar o que aconteceu com ele, depois que desapareceu. Existem apenas conjeturas, estranhas suposições. Uma delas - a mais consensual - é que o Anjo começou a experimentar um processo gradual de evanescência. As pessoas que sustentam isso afirmam que ele desaparecia por instantes. Estava assim ao lado das pessoas - discreto como sempre - e de repente ia ficando translúcido, até se tornar quase imperceptível. O argumento mais comum é que ele ficara obcecado pela ética atuarial da transparência dos registros contábeis. Internalizou tão forte o conceito, que a ideia tomou conta de seu corpo. Em determinado ponto, tornou-se irreversível. O Anjo, simplesmente, desapareceu de vista.
Curioso. A partir de então, a sua ausência passou a ser sentida intensamente. E a sua presença, que anteriormente era rechaçada, passou a ser intensamente desejada. Tanto que várias pessoas relatavam terem visto algumas vezes, em fins de tarde ou logo ao alvorecer, uma estranha figura caminhando sobre as bordas dos canais, no trecho de areia entre o jardim e a água. Às vezes a mesma figura aparecia caminhando sobre a mureta na Ponta da Praia, num passo compassado e tranquilo que contrastava com o risco de queda sobre as pedras. Era o Anjo, não havia dúvida, confirmavam todos. Uma silhueta esguia, usando chapéu e vestindo sobretudo, mãos nos bolsos. Mas, ainda segundo os relatos, sempre que alguém se aproximava, a figura desaparecia misteriosamente. Evanescia, como já vinha sendo observado há algum tempo. Alguns relatos, entretanto, diziam que o seu reflexo nas águas do canal permanecia, apesar da figura real, ou o que quer que fosse, não ser mais visível. Foi só a partir disso que o Anjo começou a sair da região de sombra humana em que o haviam colocado. O primeiro indício de seu retorno sobre-humano - ou melhor, de evidências registradas de sua presença - aconteceu justamente com um guarda-livros. Não com um contabilista tradicional, um contador. Ou era isso e mais. Mais do que isso, um cantador. O Guarda-Livros cantador. Que de repente pareceu ter perdido o controle da escrita, ao redigir suas anotações, registros, poemas, contos e cantos. No lugar de reflexões em primeira ou mesmo de terceira pessoa, como era hábito, suas mãos passaram a rabiscar no papel um estranho colóquio, em que uma segunda pessoa lhe dizia o que via, ouvia, fazia, pensava, imaginava. E, em certos momentos, antecipava os fatos que iria viver ou presenciar. Como contador, lançava o passado. Cantador, lincava o futuro. Em sua primeira manifestação, o Anjo ditou uma espécie de mensagem em versos, a que deu o título de Sete Fluxos da Memória, na qual fazia um inusitado vínculo entre esse simples guarda-livros e uma figura histórica da música ocidental, separados por um lapso de mil anos. E estabelecia uma curiosa associação entre as sete notas musicais e os canais de saneamento de Santos.
A partir de então, passou a ser conhecido como o Anjo do Guarda-Livros. Afinal, ninguém sabia mesmo qual era o seu nome. E com essa denominação virou uma das grandes referências, talvez a maior, da Costa Mater. Tanto que ocupa, no Museu de Imagens e de Sombras, posição de destaque junto à entrada principal, o portal.
As pessoas de fora, ao visitarem o Museu, estranham muito, quando tomam conhecimento da história e da importância do Anjo, e percebem que não existe nenhuma imagem, escultura, herma ou busto ali no saguão. Parecem ficar mais tranquilizadas, ou conformadas talvez, se não mais perplexas, quando são informadas de que, assim como o Anjo, discreto como sempre, todos os objetos e figuras que ali foram colocados para representá-lo acabaram, com o tempo, evanescendo.
Depois de muito tempo, alguém teve a ideia de espalhar areia em uma área do saguão, e com uma vara transcrever na areia aquele primeiro texto. Isso foi feito mas, do mesmo modo, os grãos foram se dissipando, mesmo ao abrigo do vento, e as palavras desapareceram. Tomaram então a decisão de reescrever eternamente o texto. Tão logo o texto sumia, alguém - qualquer pessoa da comunidade - tomava o cajado nas mãos, e passava a rabiscar as palavras, que todos, afinal, já sabiam de cor.
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