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Uma viagem pela música de Gilberto Mendes


Artigo a propósito de concerto realizado em 15/05/1996 no Teatro Municipal de Santos, com obras exclusivas de Gilberto Mendes interpretadas pelo Madrigal Ars Viva e pelo pianista Antônio Eduardo.


Na data, foi lançado o disco (CD) Gilberto Mendes Chamber Music, gravado pelo Spectra Ensemble, conjunto de câmara flamengo sob regência de Filip Rathe, e produzido pelo selo belga Vox Temporis, com suporte da Prefeitura Municipal de Santos, como parte das comemorações dos 450 anos de fundação de Santos.


Integrado a uma matéria jornalística de página inteira, o artigo teve seu título alterado para "Roteiro para acompanhar o programa".



Uma viagem pela música de Gilberto Mendes

Gil Nuno Vaz


Quem conhece a obra musical de Gilberto Mendes, certamente não vai perder o lançamento do seu CD, hoje à noite no Teatro Municipal, em promoção da Prefeitura, como parte das comemorações dos 450 anos da fundação da vila de Santos. E quem não conhece, ou ainda não teve oportunidade de ouvir a música desse compositor santista, que é mundialmente reconhecido como um dos grandes autores da atualidade, não deve desperdiçar a ocasião.


Para estes, vou sugerir uma espécie de roteiro para acompanhar a programação. É uma, apenas, entre muitas formas possíveis de ouvir e apreciar a música de Gilberto Mendes. O jornalista e poeta Fausto José escolheu uma visão pessoal para escrever a biografia quase romanceada do livro "Alguém chamado Gilberto Mendes". O pianista Antonio Eduardo preferiu abordar o caráter antropofágico da criação musical do compositor, na dissertação de mestrado que escreveu sobre a sua obra para piano.

A minha sugestão é acompanhar a música de Gilberto Mendes como quem faz um percurso através dos lugares em que o compositor já esteve, e que ficaram impregnados em suas composições. Embora nascido e enraizado em Santos, Gilberto é, em suas próprias palavras, um "cidadão do mundo". Não pelas inúmeras viagens que fez e pelos diversos locais que visitou e conhece. Pelas influências que captou de cada localidade e soube transformar criativamente em música.


O conjunto de composições que vai estar hoje ao alcance do público é uma passagem carimbada para essa incrível viagem. Um percurso que apresenta duas trilhas: a trilha do concerto de lançamento e a trilha do CD. No concerto, quem vai conduzir o percurso é o Madrigal Ars Viva, conjunto coral de Santos regido pelo maestro e também compositor Roberto Martins, o percussionista brasileiro Carlos Tarcha, a soprano Françoise Vanhecke e a pianista Katrijn Friant, ambas belgas. Estes dois últimos músicos participam do Spectra Ensemble, conjunto flamengo dirigido por Filip Rathe que comanda a viagem no CD, produção do selo belga Vox Temporis.


Santos e a Baixada Santista estão representadas por obras como "Saudades do Parque Balneário Hotel" (saxofone e piano) e "Vila Socó, Meu Amor" (coro), esta última com texto do próprio compositor. Um dos grandes poemas de Mário de Andrade sobre São Paulo resultou em "Inspiração", no estilo das modinhas antigas. Em estilo semelhante, na lembrança de uma valsa-canção cantada por Orlando Silva, Gilberto Mendes compôs "poeminha poemeto poemeu poesseu poessua da flor", com poesia de Décio Pignatari.


No clima inventivo dos poetas concretos da metrópole, o compositor reiventa dois poemas de Augusto de Campos: "Sol de Maiakóvski" e "TVgrama I (tombeau de Mallarmé)", utilizando a palavra "tevê" para construir uma percussão vocal meio bolero, meio cha-cha-cha. Estas duas peças vão ser oferecidas nas versões para coro e para canto e piano. De Haroldo de Campos, que completa o terceto central da poesia concreta, será apresentada a canção "Finismundo - a última viagem - parte I":


Último Odisseu multiardiloso no extremo a ver no tenso limite repropõe a viagem...


E a viagem de Gilberto Mendes continua na parceria com José Paulo Paes, um dos grandes poetas brasileiros atuais e especializado na tradução dos gregos. "Anatomia da Musa", canção com uso de imagem e ação teatral, foi escrita em 1970 sobre um curioso poema visual. Revista em 1993, será apresentada junto com "Desencontros", que foi composta a partir de um conciso texto que José Paulo Paes dedicou ao compositor. Do mesmo autor é a poesia da canção "Fenomenologia da Certeza".


Um tema de Villa-Lobos transforma-se na primeira obra coral minimalista da nossa música, a peça "A lenda do caboclo. A outra". Minas Gerais surge na poesia de Affonso Ávila, o ribeirão do inferno de "Motetos à feição de Lobo de Mesquita", e Carlos Drummond de Andrade, em "Lagoa".


O Rio de Janeiro é lembrado na incrível cena imaginária de "Ulysses em Copacabana surfando com James Joyce e Dorothy Lamour", onde a sonoridade da alma brasileira funde-se com temas gregos, sinfonias, bossa-nova e reminiscências das big-bands, misturas que Gilberto Mendes costuma fazer com invejável maestria. Um de seus band-leaders preferidos, Tommy Dorsey, é reverenciado em "The Sentimental Gentleman of Swing Revisited".


Da influência que a música norte-americana das décadas de 30 e 40 exerce sobre a criação de Gilberto vem também o "Longhorn Trio", escrita em Austin, no Texas, em 1983.


O mundo europeu aparece em "Für Annette", um título que lembra o espírito alemão romântico das bagatelas de Beethoven, no clima debussyano da peça mais antiga do programa "Trova I", escrita em 1961 sobre poema de Hilda Hilst, na camerística "Qualquer Música" (que quase se chama Lisbon Revisited), reminiscência de Fernando Pessoa. E há ainda a canção "Luz Mediterrânea. No Olvido do Tempo", meu motivo especial de honra e alegria. Ocidente e Oriente encontram-se em "O Meu Amigo Koellreutter", dedicada ao músico e compositor alemão que tanto influenciou a música contemporânea brasileira. E tem mais, de um "Claro Clarone" à serena tranquilidade da canção "A Mulher e o Dragão", com texto do último livro da Bíblia, O Apocalipse.


É uma viagem em duas trilhas, como já disse. A viagem começa na trilha do concerto e depois continua na casa de cada um, com o disco. As duas trilhas encontram-se hoje no momento-lugar em que a tradição européia é atingida pelos ventos tropicais, na composição "Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do sul", a única que consta do disco e do concerto.


Depois de passear por todos esses lugares, a viagem pode ser continuada, retomada, recuperada, através dos saborosos relatos do livro "Uma Odisséia Musical - dos mares do sul à elegância pop/art déco" (de novo os mares do sul) e de outras inventivas e sempre surpreendentes composições de Gilberto Mendes, como Santos Football Music, Vento Noroeste, O Último Tango em Vila Parisi, O Pente de Istanbul, que não estão na programação de hoje, mas podem ser encontradas em outros registros.


Boa Viagem.











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