Requiem (1981) para coro a cappella, com Madrigal Ars Viva, regência de Roberto Martins e declamação de Gil Nuno Vaz.
Para averiguar como uma composição pode, por um lado, não apresentar um campo sistêmico típico da Canção, e, por outro, atingir efeito semiósico compatível com o campo típico da Canção, foi escolhida esta peça que começa com uma melodia a duas vozes, em que a primeira frase é cantada pelas vozes femininas, e a segunda pelas masculinas. Na imagem do Território da Canção estaria na posição das canções homofônicas (Partitura 33.A).
Partitura 33.A – Requiem (seção 1 – Composição)
É uma melodia relativamente fácil de cantar, em cada voz, tanto na seqüência intervalar como na tessitura (um intervalo de décima-primeira), mas dificílimo para um único cantor, pois a tessitura aumenta para um intervalo de décima-sexta (mais de duas oitavas). Logo a seguir, o canto silencia, e uma voz solo inicia uma fala declamada (quase murmurada, introspectivamente), conforme Texto 24.A:
Esta carne em que existo há de tornar-se um dia
Em húmus germinal, em seiva fecundante
Decompondo-se em pó há de ser a energia
De vidas que sobre ela hão de viver adiante.
Texto 24.A – Soneto “Transubstanciação” (Raul de Leoni) – primeiro quarteto: Seção 2 – Declamação.
Na continuidade, volta o canto homofônico a duas vozes, com a mesma melodia. Quase que imperceptivelmente, um cantor desafina ligeiramente uma nota, enquanto, mais adiante, um outro prolonga o som de uma consoante, criando um pequeno ruído, estranho ao contexto harmônico do canto. A partitura acrescenta, nesta segunda seção, uma pauta em branco sob a pauta do canto já introduzido, conforme Partitura 33.B, para que cada cantor anote, de acordo com indicações sugeridas em texto à parte, as suas breves interferências.
Partitura 33.B – Requiem (seção 3 – Composição e primeira Decomposição)
Após a execução dessa seção, em que dois planos sonoros se misturam (o canto inicial, chamado Composição, e os cantos solistas que realizam interferências curtas, chamado Decomposição), o coro volta ao silêncio, e retorna a fala do declamador, na Seção 4. A partir daí, coro e declamador alternam-se nas seções pares e ímpares. A Composição vai diminuindo de intensidade, pela redução de vozes, e a Decomposição fica cada vez mais densa, pelo aumento de interferências. Na última seção, apenas a Decomposição é realizada, conforme Figura 18.
Figura 18 – Seqüência das seções de “Requiem”
A declamação, nesse processo, vai cometendo ligeiros “erros” de pronúncia, na verdade omissões de sons consonantais (como “g” e “v”), conforme Texto 24.B[1]
Seção 4
Esta carne em que existo há de tornar-se um dia
Em húmus erminal, em seia fecundante,
Decompondo-se em pó há de ser a eneria
De idas que sobre ela hão de ier adiante.
Seção 6
Essa care em que eisso há de orare um ia
Em húmu ermial, em eia ecudae
Decom odoe em ó, há de er a eeria
e ia que ore ea hão de ier adiane.
Seção 8
E a ae e e e i o á e oae u ia
E ú u e i a, e eia e u ae
e o o o e e ó á e e a ee ia
e i a e o e e a ão e i e a i a e.
Texto 24.B – Soneto “Transubstanciação” (Raul de Leoni) – Seções 4, 6 e 8 – Declamação.
Trata-se assim de uma estrutura formal binária (AB), repetida por várias vezes, sempre com variações em ambas as seções, até finalizar com uma última variação da Seção A. Por outro lado, tal estrutura pode ser entendida também como uma espécie de rondó[2], só que ao invés de manter uma seção fixa e outra variável, as duas apresentam variações, e estas se diferenciam não pelo tipo de discurso (música, fala), mas também pelas mudanças de densidade de ocorrências na música, em que um tipo de material vai se sobrepondo ao outro, através de múltiplas intervenções, e pelo esvaziamento de sons, com o texto se rarefazendo, na fala, pela omissão de fonemas, o que é feito tudo por uma única voz.
Em face desses elementos, não seria razoável afirmar que Requiem é percebida como uma Canção. No Território da Canção, estará certamente posicionada na região fronteiriça do limite exterior. Mas, é razoável afirmar, sustentado na observação de comentários e reações à audição da peça, que o impacto tem sido semelhante, ou até superior, ao de canções que tematizam a morte, como as anteriormente citadas. Tal perspectiva constituiu uma das razões que nos levaram a escolher esta peça.
Outra razão é que, para aprofundar os motivos que colocam essa dualidade e ambiguidade, a morte é um excelente tema, “uma temática intensamente forte no âmbito da cultura humana” (Valente 1991) que desencadeia significados em todas as esferas de nossa vivência.
Além disso, possibilita comparações com duas canções já citadas: “Wanderer Nachtlied”, de Schubert (no Capítulo 6, Partitura 21), e “In der Fremde”, do ciclo “Liederkreis”, de Schumann (no Capítulo 4), que também desenvolvem o mesmo tema, associado pela atribuição de características musicais: respectivamente, um desenho melódico (um toque de trompa) no primeiro caso, e um jogo de tensões (uma mitigação sonora), no segundo.
Requiem utiliza ambos os procedimentos, mas o faz de maneira diferente, e é nesse ponto que o foco da análise vai oscilar entre a Relevância Formal, em que a peça comentada distancia-se do perfil da Canção, e a Relevância Reticular, em que dele se aproxima, e talvez até suplante, em efeito semiótico, as canções mencionadas.
Essa diferença pode ser avaliada sob dois aspectos envolvidos na intensidade das relações sistêmicas:
a) o tipo do recurso formal e expressivo utilizado; e
b) o grau de equivalência, ou paridade, na autonomia de representação dos diversos signos envolvidos.
Mitigar ou Decompor, eis a questão – para avaliar o tipo de recurso utilizado, vamos diretamente à associação que Requiem estabelece entre o jogo de tensões que a peça desenvolve e os significados que podem ser extraídos diretamente da contraposição de contrastes e semelhanças, aproximações e distanciamentos em relação a um material tomado como guia de memória.
Embora para músicos, estes aspectos geralmente sejam sucientes para criar uma significação satisfatória, uma significação estética, o fato é que o processo semiótico não pára aí. As pessoas simplesmente associam música com outras coisas, como florestas e lugares exóticos, bem e mal, alegria e tristeza, certo e errado, morte e vida. Não há como fugir ao fato de que as pessoas tendem a simbolizar a música, ainda que desprovida de referências visuais ou verbais.
É, pois, o momento de refletir sobre como pode se dar a passagem dos elementos sintáticos (densidade, contraste etc) para os semânticos (morte/vida etc). Nesse sentido, “o problema semiótico não é confirmar que existem partes e relações internas entre as partes de uma peça de música. (...) O problema está na decisão de quais relações são significativas”.[3]
As relações significativas, no caso, serão aquelas que caracterizam o ponto em que a articulação formal de materiais sonoros provoca a remissão do pensamento ao fenômeno da morte, sem depender exclusivamente da referência explícita da mensagem verbal, através do texto poético e do título da composição, ou outra qualquer. Então, onde estará esse significado visceral, em que todas as modalidades de expressão envolvidas se fundem numa coisa só, em nível de igualdade? E em que nível de apreciação será possível captar esse significado de raiz?
Essa é, no fundo, a proposta de Mosley (1995), buscando no “fundamento” peirceano o ponto de encontro, chegando à mitigação como elemento componente da morte, um tipo de sensação, ou de estado, ou ainda de processo físico. Mas a sensação de mitigação não é exclusiva da morte e, portanto, pode conduzir também a vários outros objetos, que contenham essa sensação que mistura abrandamento, afrouxamento, amolecimento e perda de tensão de materiais.
Em Requiem, esse nível de significado é buscado nas alusões à decomposição de materiais, como fica caracterizado pela análise a seguir, em que a morte é tratada como um texto cultural, a partir dos conceitos da Semiótica da Cultura.
... a morte caracteriza-se como um texto cultural. Como tal é construído pelos seguintes princípios: 1- constitui-se de uma LIGAÇÃO BINÁRIA (morte/vida), em que 2- o par forma dois extremos POLARES, onde 3- um pólo é mais forte que o outro, resultando numa ligação ASSIMÉTRICA: o pólo negativo é sempre mais forte que o positivo (o negativo representa o medo, o novo, a perda...). Como tudo na vida caminha para a assimetria negativa (a perda das capacidades físicas é inevitável), o texto cultural se vale do 4 – princípio ACIONADOR de superação da assimetria, através dos mecanismos: a) COMPLEXIFICAÇÃO das estruturas binárias, criando uma tríade; b) INVERSÃO: o pólo negativo torna-se positivo e vice-versa; c) FUSÃO: os dois pólos se fundem num elemento mediador; d) SEPARAÇÃO, delimitação de fronteiras entre os textos (Valente 1991).
Complementando suas observações, a autora afirma que Requiem nos sugere
... a possível leitura: simbolizando a morte, é, sem dúvida, uma oposição polarmente mais forte que “vida”; negativamente assimétrica, portanto. No plano lingüístico, observa-se a idéia expressa de Raul de Leoni: carne = pó = energia = novas vidas. O que ocorre, nessa passagem, é o mecanismo de inversão (morte=vida). Simultaneamente, os extremos polares se fundem: a mediação que nos rituais é estabelecida pelo xamã, pelo sacerdote, pela fada (nos contos) é aqui simbolizada pelo declamador: morte se funde na vida; a morte do adiante fica ofertada (simbolicamente). (Valente 1991).
Conforme sugere a Figura 19, que procura representar visualmente o processo de significação da morte, segundo a Semiótic da Cultura, as crenças na vida após a morte, embora variando conforme as religiões, nascem da consciência e do reconhecimento de que a morte é inevitável. Por outro lado, existe uma força interna que nos mantém atentos contra os riscos à vida, que é o nosso instinto de sobrevivência, e isso gera um sentimento de que, apesar de nossa fragilidade, é possível lutar pela permanência, prolongar a vida através de cuidados, e assim retardar a morte.
Figura 19 – Elementos de significação presentes no conceito de “morte”
Esse sentimento extrapola o nível físico, não apenas a sobrevivência corporal, chegando à preservação das idéias, das lembranças, da memória. Na base dessa nossa relação com a morte está, portanto, um tipo especial de percepção sobre as ameaças à vida, o sentimento involuntário e automático de medo e alerta perante o perigo da morte. Não é uma questão de falar a respeito da morte, mas de sentir a sua iminência, a aproximação do perigo.
Uma percepção que provoca o suor frio, o calafrio, e que é o estágio mais próximo daquele significado visceral, que seria a sensação de uma carência básica, de uma privação contingente, como é o caso da fome, da sede etc. Nesse nível, o único significado que representa diretamente a morte seria um signo de ameaça à vida, de risco fatal, de perigo de morte iminente.
Um perfil de organização de sons ao qual não estamos habituados, que fere os nossos ouvidos, pode eventualmente causar uma sensação de desconforto, de inquietação ou exasperação tão grandes, a ponto de desencadear um processo orgânico que nos faça sentir mal e, de repente, agir como um fator fatal (uma aceleração cardíaca que resulte em ataque).
Para conviver com o tema da morte, entretanto, outros níveis de significação vão sendo desenvolvidos. Em níveis que começam a emergir desse estrato profundo, a significação começa a se refletir em elementos mais gerais, determinados por essa consciência da morte, mas que se aplicam a praticamente todos os elementos. A morte é a destruturação total, a uniformidade absoluta de um todo que acaba com a individualidade.
Essa é a grande perda semiótica. Nesse sentido, perante um material que se apresenta fragmentário, esfacelado, a reação de sobrevivência psicológica, de posse, é a identificação de articulações no fluxo de informações que permitam a percepção de algo organizado, pois a organização é o procedimento que fortalece a vida. A geração de conhecimentos é vital para a permanência.
Assim, à medida que tais níveis são utilizados para se referir à morte, os signos ganham cada vez mais maior multiplicidade associativa (capacidade semiósica), podendo ser vinculados a outros contextos, além da morte. É isso que nos faz perceber que, embora não haja uma semelhança unívoca entre determinada música e um objeto externo a ela, nós sempre sentiremos que, em relação a determinado objeto, alguma música parece compatível, enquanto outras não.
O que acontece é que um material inicial apresenta-se em acordo com os padrões usuais de música e poesia na sociedade ocidental e, à medida que, tanto uma como a outra, vão se fragmentando, caracteriza-se uma perda, que pode gerar desde estranhamento até insegurança, desconforto, exasperação ou medo. A tentativa de recompensar essa sensação de perda é realizada pela apreensão da forma como um todo, que vai mostrando a descontrução de um material.
Assim, em Requiem, também o uso de recursos semelhantes não conduzirá inequivocamente a música para o objeto “morte”, sem o direcionamento do texto. Com este, mais a encenação, não resta dúvida de que o entrosamento é bastante estreito. Assim, apesar de a peça cumprir seu desiderato, também não logra atingir o estrato mais profundo da Radicialidade, o que seria impossível. Então, usando elementos artísticos que intensifiquem aqueles princípios acionadores, pode-se chegar mais próximo ao significado visceral, algo que, na realidade, mantém-se como algo praticamente inatingível.
E é o que acontece com Requiem, em que a decomposição funciona com mais eficácia do que a mitigação.
Música e Letra, ou Música ao(s) pé(s) da Letra? – para avaliar a in(ter)dependência dos componentes da Canção na geração do significado “morte”, tomemos o trecho abaixo:
O trabalho vocal desenvolvido na parte coral é exatamente o contrário daquele que realiza o declamador. Explorando os elementos timbrísticos do texto litúrgico, passa-se paulatinamente do vocálico ao consonantal, do legatto ao stacatto, à percussividade, ao ruído, às frequências aperiódicas, ao pulso rítmico, ao silêncio. (...) A cada entrada de solistas, a melodia da música morre. Ao final, os restos mortais: os ossos-consoantes, o esqueleto-rítmo, a melodia silenciosa, sem carne. (Valente 1991).
A referência ao “texto litúrgico” já define um nível de enraizamento (radicialidade) do significado: o “requiem” como celebração religiosa. Esse dado já reflete uma diferenciação na capacidade semiósica, pois o significado, no que cabe à música, é dependente da poesia (texto) e da circunstância ou ambiente (litúrgico).
Seguindo esse caminho de investigação, a Radicialidade consistirá no significado veiculado pela poesia, apoiado no impacto dos signos musicais e de outros elementos. Para haver um equilíbrio na participação de cada tipo de signo para gerar um determinado significado, a situação de paridade seria atingida quando todos, independentemente, conduzissem a um signo denominador comum que, nesse caso, corresponderia ao signo de menor capacidade semiósica referencial, como abordamos anteriormente.
Por exemplo, se um poema fala da morte, não precisa de música para estabelecer tal referência. A música, entretanto, não tem essa capacidade semiósica, não consegue estabelecer uma referência precisa por si só, independente da poesia, da dança, do ambiente. O toque de morte, da canção de Schubert, é válido apenas em um contexto histórico e geográfico.
Além disso, dentro de um mesmo tipo de signo, pode haver diferenciação na escolha do recurso expressivo utilizado especificamente. A questão, assim, não é se a música resulta compatível com o contexto referenciado pela poesia, ou pelos movimentos, ou pelo ambiente. É se refere com equivalência representativa o objeto para o qual os demais signos apontam.
Na mitigação identificada na canção de Schumann, existem referências verbais a estados de espírito que sugerem a mitigação. Mas a mitigação não está presente. No caso da música, a mitigação é identificada na distensão melódica de um trecho da peça. Não é, portanto, aludida em grau equivalente de significação pela música e pela letra.
Já em Requiem a decomposição não apenas é aludida pelo poema de Raul de Leoni. A poesia e a música são estruturalmente decompostas em fragmentos que decorrem de intervenções aleatórias, dentro de determinadas recomendações, o que resulta numa visão desorganizada da peça.
Com isso, reforçada pela duplicidade de significados que se desenvolve na própria estrutura da composição, a decomposição imprime maior poder representacional do que o processo induzido pelo conceito de mitigação. A própria voz do declamador participa do processo, de modo que, no conjunto, mesmo que o idioma em que a peça é cantada seja desconhecido, ou sejam ignorados os detalhes do assunto, o significado de “morte” tende a surgir com mais fluência do que na canção de Schumann, embora não sendo tipicamente uma Canção.
[1] Em análise dessa composição, Valente (1991) entende que “... à medida que as seções se intercalam, a melodia ganha ruído, vai se tornando percussiva, enquanto que o poema recupera a melodia; pura vocalização. (...) E como foi realizada a decomposição do poema? Na 4a seção foram eliminadas as consoantes sonoras, que causam maior impacto auditivo que as surdas (percussivas); v e g foram selecionadas por resultarem numa modificação discreta na semântica ("erminal", "seia", "ier" sugerem vocábulos de pouco uso ou arcaicos; "idas" é vocábulo existente de uso cabível no contexto do poema). Na 6a seção... o desmantelamento do texto se faz intencional, o nível semântico já se perde. E a 8a seção, por fim, mantém somente as vogais, pronunciadas abertas ou fechadas, obedecendo à forma de pronunciação da 2a seção.”[2] O enquadramento de uma composição em um modelo formal, enquanto processo de percepção e reconhecimento de eventos, também pode ser influenciado pela Contextualidade. Em 1991, em entrevista para matéria jornalística (Jornal Folha de São Paulo, 20/10/91) sobre apresentação musical que seria realizada em um teatro de reduzido porte, com palco minúsculo, o jornalista espantou-se com a inclusão de um Requiem, finalizando uma exibição de quase hora e meia. A perplexidade do repórter decorria da associação imediata que fez entre “Requiem” e “Missa de Requiem”, assumindo que uma composição com esse título deveria ser uma missa, que seria longa e mais propícia para ser realizada numa igreja. [3] Mensagem postada no dia 07/06/2000, na lista de discussões Musikeion, hospedada pela PUC- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (http://www.pucsp.br)
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