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O som brasileiro nos anos 80


















O som brasileiro nos anos 80 trouxe expectativas e ilusões

(publicado no jornal A Tribuna de Santos de 06/01/1990)



“Curiosa década, estes anos 70. Depois da fermentação crescente dos 60, entramos nela num clima de expectativa: e agora? E depois? E ficamos tão encharcados dessa ansiedade, que nem vimos a década passar. Digam-me, qual o som dos anos 70? Quais suas características? Só agora, no limiar dos anos 80, é que surgem tais indagações. O que ficamos fazendo durante os anos 70? Esperando, esperando o trem que já vem, que já vem, que já vem. E resmungando que nos anos 60 (ou 50, ou 40...) era melhor.”


E nos anos 80?

Acho que a nossa expectativa foi exatamente o contrário da década anterior, conforme a observação acima, de Ana Maria Bahiana no livro Nada Será Como Antes – MPB nos anos 70.

Nós entramos nos anos 80 com a esperança de algo diferente. Não a retomada de uma linha evolutiva, como se falava antes. Ao invés de evocar o passado, descortinar soluções novas no futuro. Ruptura. Escapar dos padrões, da imposição de modelos. E o que aconteceu?


“Foi terrível, foi ótima. Enquanto vivíamos seu dia-a-dia, dava a impressão de que era um espaço imóvel de 10 anos. Uma era morta em que nada acontecia. E, no entanto, tudo aconteceu.”


Também aqui os anos 80 foram o avesso dos 70. Deu a impressão de que aconteceu muita coisa. Teve Rock in Rio, MPBShell, Festival dos Festivais, Free Jazz, Cazuza, Titãs, Marisa Monte... Um tanto ilusório. A década foi mais anos oito do que oitenta.


A música popular brasileira entrou na década de 80 sob a bandeira da unidade nacional, cujo símbolo era o programa Som Brasil, da TV Globo, capitaneado pelo cantor e compositor Rolando Boldrin. Tratando a música regional brasileira pelo ângulo da integração cultural, o Som Brasil fez com que o caráter de música de raízes se sobrepusesse às peculiaridades locais. Sugeria assim que manifestações tanto distanciadas, estética e geograficamente, como a toada caipira e a embolada nordestina, constituíam exteriorizações diversificadas da mesma grande alma sonora do Interior.

Além disso, ampliou o conceito da sigla MPB, incorporando a ela diversas tendências musicais. Nesse programa, e em outros que seguiriam a mesma trilha (Empório Brasileiro, por exemplo), a produção urbana estava ao lado da rural, a criação experimental junto com a tradição, pela presença de nomes como Milton Nascimento, Egberto Gismonti e outros considerados da primeira linha da MPB.

O outro lado da moeda era a consolidação dos padrões impostos pela indústria fonográfica, com influência predominante do mercado norte-americano. Voltando a uma comparação com a década de 60, em que música popular significava também baladas italianas e canções francesas, por exemplo, em 80 a expressão passou a ser sinônimo de música americana e inglesa, ou anglo-saxônica.

A música sertaneja, que ganhou espaços crescentes no horário nobre dos veículos de comunicação de massa, é uma boa evidência disso. De Milionário e José Rico a Chitãozinho e Xororó, passando por Sérgio Reis (que em 60 era jovem-guarda), o caipira tornou-se cada vez mais country.


INDEPENDÊNCIA OU MULTI


O foco de resistência a essa engrenagem mercadológica ficou a cargo dos chamados músicos independentes, uma conjunção de aspirações comuns a vários artistas que, sem constituir propriamente um movimento, vinha se delineando no final da década anterior e teve sua maior projeção nos anos 82/83.

A produção autônoma começou a ganhar consciência com a ação isolada de Antonio Adolfo, em 1977, que lançou sozinho o disco Feito em Casa. Mas foi o sucesso comercial do grupo Boca Livre, no início da década, que despertou o entusiasmo e desencadeou uma onda de lançamentos à margem da indústria fonográfica.

Por essa época, vários grupos e compositores ligados à Escola de Comunicações e Artes da USP concentravam sua atuação em torno do Lira Paulistana, uma casa de espetáculos recém-instalada em São Paulo para abrigar eventos alternativos. A partir da catalização exercida por esse núcleo, que também editava discos, foram se firmando os nomes de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Grupo Rumo, Eliete Negreiros, Língua de Trapo, Premeditando o Breque (Premê) e outros.

Em determinado momento, representado pela associação do Lira com a gravadora Continental, em 1983, parecia que a produção independente ia engrenar com a máquina mercadológica do disco, viabilizando uma alternativa mais consistente e duradoura. No entanto, a predominância de lançamentos ousados e arriscados trouxe problemas que comprometeram a continuidade do projeto.

Pouco depois, o Lira desaparecia, levando consigo todo o ímpeto do movimento. Vários grupos dispersaram-se outros permaneceram atuando de forma autônoma e alguns conseguiram integrar-se ao mercado. O trocadilho do grito da liberdade, formulado pelo músico Alcides Neves, não se consumou: a produção independente não conseguir se viabilizar como alternativa em relação ao sistema dominado pelas multinacionais do disco. Foi Independência... e Morte.

Mas não resta dúvida de que o saldo estético deu positivo e resultou numa contribuição marcante para a MPB dos anos 80.


Outra característica da década está na emergência e afirmação da música instrumental. Depois da fusion, corrente que nos anos 70 misturava rock e jazz, este último passou a designar os mais diversos e adversos gêneros, abrangendo até a ginástica. No bojo dessa generalização voltada para o alargamento do consumo, algumas propostas sérias apareceram: grupos como Pau Brasil, Um, Pé Ante Pé, com destaque para os instrumentistas Roberto Sion, os irmãos Zé Eduardo e Lelo Nazário, além de outros.

Importante para a música instrumental foi a atuação constante e persistente da gravadora Som da Gente, de projeção menos ostensiva do que o Lira Paulistana, mas que balanceou melhor sua programação, incluindo nomes como Hermeto Paschoal e Dick Farney, e garantindo uma penetração discreta, mas equilibrada no mercado.


O MENOR ABONADO


Nesta década, a indústria fonográfica plantou e colheu um novo e importante segmento de mercado: o público infantil. Face às dificuldades do início da década, quando a produção de discos experimentou uma forte redução, as gravadoras investiram na criança, como tática para recuperar a evasão da demanda.

A fórmula do sucesso foi descoberta com o especial de TV Arca de Noé, em que um musical ultra-sofisticado, cheio de cores e movimentos, estimulava a compra do disco através da criança. A diferença fundamental em relação ao tradicional disco infantil era a eliminação das historinhas clássicas, com diálogos e sonoplastia. Quando muito, apenas um texto curto de introdução, para dar unidade ao conjunto, e uma seqüência de canções interpretadas por artistas de evidência da MPB.

O repertório trazia basicamente música para dançar e, ao invés de cantigas de roda e danças folclóricas, canções especialmente compostas por grandes autores. A encenação ficava por conta da TV, peça-chave da estratégia.

O resultado foi tão espetacular que deu origem à seqüência e a desmembramentos: veio o Arca de Noé II, depois Pirlimpimpim I e II e muitos outros, até chegar ao Balão Mágico e a Simony, que perdeu o lugar para a Xuxa, que dura até hoje e já está no quarto LP. Sem contar Angélica, Trem da Alegria, Mara, Paquitas e outros subprodutos.


O rádio, que sempre foi o grande cartaz do produto disco, ganhou nos anos 80 um aliado publicitário: o videoclip, que invadiu as telas da TV através de inúmeros programas do gênero: Som Pop, Clip Clip, Super Special, Realce e por aí afora.

O recurso, entretanto, acabou funcionando mais para a música americana e inglesa, que apresentavam produções visuais de alto padrão técnico e domínio da linguagem típica dos comerciais de TV: uso predominante de primeiros planos, edição à base de cortes sucessivos fragmentando o contexto e resultando numa montagem ágil, nervosa. Os videoclips nacionais, entretanto, não conseguiram estabelecer qualquer correspondência técnica ou alternativa em criatividade. Mas funcionaram como apelo promocional nas edições do Fantástico e programas afins.

Com relação aos nomes consagrados, não há muita novidade a registrar: Chico Buarque manteve seu padrão, Caetano Veloso continuou com momentos de grande inspiração (LPs Cores, Nomes, Uns, Estrangeiro); Gilberto Gil caiu na política e decaiu na criação, Fagner assumiu o brega, outro rótulo dos anos 80. Elis Regina morreu, Os Cariocas tentaram ressucitar e o MPB-4 já pensa em se perpetuar na nova geração, incorporando os filhos de seus integrantes aos shows.

O samba-de-enredo ocupou definitivamente o posto de música de carnaval, abolindo o samba tradicional e a marchinha (na década de 70, ainda havia tentativas como Samba, Suor e Cerveja, de Caetano Veloso). Eo Carnaval ganhou o seu novo templo: o Sambódromo. De resto, foram os modismos do break/gafieira, a lambada e tantos outros produtos musicais estrategicamente colocados para consumo rápido e proveitoso.


SEM CONSERTO?


A música erudita brasileira, sempre às voltas com sérias dificuldades de divulgação e apoio, viu consolidar-se a importância do Festival Música Nova, organizado pelo compositor Gilberto Mendes e que em 1989 teve a sua 25a edição, o mais antigo evento da América Latina no gênero. Desde 1984 realizado simultaneamente em Santos e São Paulo, com tentativas de ampliação para Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Salvador, o Festival reafirmou sua projeção nacional e internacional.

Digno de menção é também o retorno do Prêmio Eldorado de Música, que na década de 60 revelou nomes como os pianistas Caio Pagano e João Carlos Martins, promoção que voltou ampliada nos anos 80, estendendo-se a todos os instrumentos. O MIS – Museu da Imagem e do Som – em São Paulo, começou uma série de depoimentos históricos, e a Funarte, através do Instituto Nacional de Música, editou vários registros importantes para a produção erudita nacional.

Duas correntes estéticas, que atualmente já estão parcialmente abandonadas, estiveram em pauta: o pós-modernismo e o engajamento político-social da música de vanguarda. Esta última teve seu clímax por ocasião da campanha das Diretas-Já e pela preocupação ecológica que mobilizou a sociedade.

Destacaram-se ainda os livros O que é música e Música da Modernidade, do crítico José Jota de Moraes, lançados pela Brasiliense em 1983. Recentemente, a Cia. das Letras editou O Som e o Sentido, escrito por José Miguel Wisnik e ilustrado com uma colagem musical de Hélio Ziskind. Importante também a publicação do Dicionário Musical de Mário de Andrade, resultado de dedicado trabalho da musicista Flávia Toni.

A registrar, ainda, as perdas de Francisco Mignone e Cláudio Santoro, entre os nomes mais tradicionais, e Lindenberg Cardoso, figura ímpar do movimento baiano. Desastre da década: o desabamento do palco em Americana, cena simbólica do descaso com a produção cultural do País. O apoio do setor empresarial apresentou um certo crescimento, insuflado pela Lei n. 7505, de 1986, que concede benefícios fiscais a patrocínios, doações e investimentos na área cultural. Por falta de uma política melhor direcionada, os resultados não podem ser considerados excepcionais. Mas já representaram algum avanço.


Resumindo (quem esperava lista dos 10 melhores lançamentos e coisas do gênero, sinto muito, é com outro departamento): nos anos 80, perseguimos intensamente a democracia e, para tanto, tivemos que passar por uma estreita abertura e uma demorada transição. Chegamos lá?

Na música, o grande tema foi o contraste, cada vez mais acentuado e defasado, entre a abundância da criatividade e a escassez de condições materiais de produção e divulgação. Continua na próxima década.

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