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Magia musical de Tetê, uma indomável


Artigo publicado no jornal A Tribuna de Santos em 22/08/1983.

 

A seção mágica do show Amor y Magia, que Tetê Espíndola realizou dia 12, em Santos, apresentando-se aqui pela primeira vez, inicia com o palco vazio, abandonado pelos músicos. Então, entra em cena a voz da cantora ausente, solando desacompanhada e isolando no ar a bela melodia da valsa Londrina, de Arrigo Barnabé.


A idéia é extremamente feliz: sem qualquer referência harmônica, a linha meódica parece planar livremente com as “nuvens vermelhas no céu” e o “avião voando sozinho sobre o perobal” descritos na letra.


Assim ela instaura o apelo sugestivo de um ambiente encantatório, reforçado na gruta caiçara pelo emprego de uma iluminação com cores extremas do espectro. Daí para a frente é deixar-se envolver pelo seu som fluido, cantando canções como quem conta histórias de fantasia e mistério ao pé da fogueira. Serão de sussurros e sibilos que suspiram segredos do sertão, cenário de sinuosas silhuetas serpenteando nas sombras. Sustos: o jaguadarte, olhos de jacaré, vaia de araras que “solto e vou ao sol no vôo enquanto sôo”. Nunca jamais se ouviu tanto bicho assim...


Todo esse fascínio, cujo foco hipnótico tem sido a voz da intérprete, na verdade emana de raízes mais profundas, que se alimentam de uma fonte substancial: a marcante personalidade artística de Tetê Espíndola. Adotando postura quase mística de relacionamento com os sons da natureza, ela vai absorvendo novas experiências musicais sem nunca perder de ouvido o seu habitat acústico.


Determinada a decalcar no canto a riqueza sonora dos bichos, dos ecos dos chapadões e ruídos do pantanal, Tetê se coloca acima de qualquer compromisso que se lhe imponha desviar-se dos elementos naturais. E continua firme na posição, resoluta, apesar de bastante criticada por apegar-se ao regional, preterindo músicas de pretenso caráter universal.


Ganha-se com isso contribuições significativas, resultantes da atuação de Tetê, que se entrega e integra completamente ao trabalho, compondo, sozinha ou em parceria, tocando a craviola, conduzindo os arranjos para atingir o clima desejado, escolhendo formações instrumentais adequadas (como os dois violões do Duofel, o contrabaixo de arco e a percussão que a acompanham no espetáculo).


A cantora-compositora-instrumentista-arranjadora age assim em favor de uma totalidade de concepção que mantenha o espírito das coisas simples que cultiva. E é curioso como lança mão, em medida que não extravase o necessário, do expediente de fazer a mocinha ao mesmo tempo ingênua e maliciosa do Interior.


O seu trabalho, entretanto, vem sendo curtido de modo superficial, provocado basicamente pela excentricidade dos dotes vocais, priviligiados em extensão, afinação, timbre, sustentação e volume, apenas para ficar nos mais evidentes. Em recente entrevista num programa de televisão, Tetê confessava-se consciente desse viés, acreditando-se tratar-se de fase que será vencida aos poucos. Já no próximo disco (que sairá por sua produtora própria, a recém-fundada Arara), ela pretende dosar com maior equilíbrio as participações vocal e instrumental, de modo a atenuar a dominação exercida pela voz.


No show, contudo, Tetê ainda não realiza esse intento, dando ao contrário a impressão de usá-la por virtuosismo e um tanto indiscriminadamente. Se na seção mágica a voz corporifica toda a fanstasmagoria dos entes, animais e objetos evocados, a primeira parte traz uma Tetê que parece perder o controle de seus recursos, sobressaindo isso principalmente nas canções em homenagem às cantoras do rádio.


Algumas recriações ficam próximas do caricato e, quando a caricatura funcionaria (Garota Solitária, de Adelino Moreira), uma idéia interessante como esganiçar a voz na palavra feia é desperdiçada pela repetição do efeito na frase seguinte, que pediria contraste.


Talvez essas pequenas arestas sejam apenas manifestações do componente selvagem do seu canto, uma espécie de recusa em se deixar domar pelos arreios da estética civilizada. Alguma coisa, porém, teima em trazer à lembrança, com tintas menos fortes, a Ópera Aberta, de Gilberto Mendes, um teatro musical em que a prima donna entra em cena e começa a servir-se de diversas árias para exibir sua voz, até projetar-se na figura de um halterofilista contemplando extasiado a própria musculatura. Mas a Ópera Aberta, felizmente neste caso, não é uma questão fechada...





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