Conta uma antiga lenda que na terra do sol nascente foi inventado um aparelho de som extremamente sensível. Além de captar e reproduzir fenômenos acústicos, correlacionava ondas sonoras com campos vibratórios de natureza e sentidos diversos. É o que já denunciava a nomenclatura dos seus comandos, com indicações que sugeriam nomes de pessoas, tais como "Áudio Aparecido Secco", "Áudio Plácido da Encarnação", "Áudio Severo Salgado" e outros. Talvez fossem pessoas que compartilharam a invenção ou uso do aparelho, cientistas, artistas, não se sabe. E nem todos tiveram o seu nome gravado no painel, como foi o caso de Cyrano de Bergerac, o escritor francês do século 17 que descreve o aparelho no(s) seu(s) livro(s) Viagem(ns) ao(s) Império(s) do Sol (e da Lua). Aliás, não só teve o nome omitido, como passou a ser tomado como simples personagem de ficção, tantas foram as peças teatrais e literárias que escreveram sobre ele, ou melhor, sobre uma caricatura dele. A mais famosa teve como autor o seu conterrâneo Edmond Rostand, cerca de três séculos mais tarde. E até hoje ainda existem pessoas que pensam ser Cyrano de Bergerac uma criatura da ficção de Rostand.
Bem, depois de passarem muitos séculos, um dia o artefato chegou a solo antípoda, bem ao alcance das mãos de uma criança com fortes pendores musicais. Um menino, recém alfabetizado, que foi tomado por intensa curiosidade ao ler a indicação de um daqueles botões no painel da máquina. O que o levou, incontinente. a apertar a tecla "Áudio Augusto da Luz". Imediatamente, um raio de claridade fulminante o atingiu, em meio a uma intensa névoa (gelo seco da época, quem sabe?). Quando a névoa do evento finalmente se dissipou, o menino desaparecera e em seu lugar surgira (sobe trilha grandiosa):
Guto Hazuki.
(Trilha cai para fundo musical).
Não sei se esse pequeno conto à moda oriental joga alguma luz sobre o que aconteceu com a composição "Ode ao Gosto Oriental", que Guto Hazuki escreveu para o poema homônimo de José Bonifácio. De qualquer modo, para bem da história, em caso positivo ou negativo, detalhes precisam ser contados.
A composição, um singelo e delicioso xote à moda ocidental do gosto baiano, estava prevista para ilustrar um momento importante da vida do Patriarca da Independência, conforme rezava o roteiro dramatúrgico de Orleyd Faya para a encenação Ópera Samba José Bonifácio, dirigida por Tanah Corrêa. Deixo de lado detalhes paralelos sobre esse evento, que podem ser recuperados em outro nó desta rede, envolvendo mais compositores, como Reinaldo Andrade, Dennis Christofer, e Diego Spósito.
De repente, o diretor decide retirar a composição de Guto desse instante chave da peça teatral, quase no seu ápice. E a desloca para a antessala do espetáculo: o tempo de espera antes dos três toques. Uma viagem no tempo-espaço, quase entre antípodas, consumando o conto das cabeceiras. Mas, aí pensei: se uma canção que é parte da trama vira introdução, por que não fazer de outra introdução uma canção que retorne à trama? E de novo se torne partícipe, por dentro da trama? Guto havia escrito um breve reisado como introdução ao xote, que fora deixado de lado. O reisado volta então nas palavras de Dom Pedro I, em três curtos momentos, formando a sequência "Eu Peço, Eu Faço, Eu Não Vou".
É certo que, logo depois, a música e os versos dos extremos dessa brevíssima trilogia foram preteridos (outro golpe) em favor do texto teatral, reduzindo-a na peça ao verso central ("Eu faço"). Por isso, "Eu Peço" licença a todos, e certo de que "Eu Não Vou" ofender ninguém, "Eu Faço" aqui a afirmação (profecia?) de que tais deslocamentos jamais terão o condão de apagar da história a parceria então criada, que até hoje não se sabe se foi à moda oriental ou ocidental.
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