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Grupos corais querem mudar imagem


Este artigo, que nem chegou a ser submetido para publicação por qualquer veículo de comunicação, foi escrito a propósito da campanha "Cante Brasil em Coro", promovida pela Confederação Brasileira de Coros, com sede em Novo Hamburgo (RS), em setembro de 1991.


A campanha consistia na venda de dois adesivos para carros, cuja renda reverteria em benefício da entidade e dos corais participantes. Como objetivo, segundo declaração da própria entidade, era "trabalhar melhor sua imagem, o que é possível apenas se nos fizermos ver e ouvir em todo o território".


Na época, ganhava cada vez mais força a tendência entre os grupos de realizar repertórios de música popular, em arranjos para coro, e interpretar as canções com coreografada movimentação cênica. Buscava-se contrapor à postura estática das apresentações de peças corais típicas, e à sua imagem fortemente atrelada a datas e ambientes religiosos, uma dinâmica teatralizada e um som musical de comunicabilidade direta com o público. A motivação para escrever o artigo veio como um gesto de contestação do que parecia ser uma acomodação do movimento coral ao consumismo da indústria cultural, a música como produto da comunicação de massa.


De certo modo, a percepção de que a tendência era irreversível a curto, e mesmo médio, prazo, e que só o tempo poderia de fato revelar a validade das mudanças em curso, levou à desistência pela publicação. Mas, três décadas após a referida campanha, reler o artigo e comparar com a situação atual talvez aponte em alguma direção sobre a correção, ou não, dos rumos que o movimento coral seguiu.








Grupos corais querem mudar imagem


(artigo não publicado)

escrito a propósito da campanha “Cante Brasil em Coro”, promovida pela Confederação Brasileira de Coros, com sede em Novo Hamburgo (RS), em setembro de 1991.




Divididos entre o repertório sacro tradicional e os arranjos de canções populares, os coros parecem ter perdido a consciência crítica de seu papel histórico, como instrumento da maior importância na evolução da linguagem musical ocidental. São poucos os grupos comprometidos com a divulgação de trabalhos experimentais de compositores em atividade. No momento em que se esforçam para mudar uma imagem anacrônica, os corais deveriam sintonizar sua atuação com a produção contemporânea que busca novas propostas estéticas.


Coral rima com Natal. Ao som de Noite Feliz, Adeste Fidelis e outras, a festa cristã vem sempre embalada pelo canto em coro, conjunto de vozes que acompanham as celebrações litúrgicas da época. E é justamente essa a imagem clássica, estereotipada, de coral: um grupo de pessoas cantando no coro da igreja.


É o peso da tradição. A música coral tem sua origem ligada ao sentimento religioso do homem. Foi manifestação de temor e reverência nos ritos primitivos, para aplacar a ira dos deuses. Foi também instrumento de catequese para a fixaçào de preceitos ecrenças na mente dos fiéis. Reforma, Contra-Reforma, Missões.


A secularizaçào atual da arte, reflexo da predominância do Estado laico na civilização contemporânea, não apagou a imagem. Mas ampliou o distanciamento entre a música coral e os padrões estéticos veiculados pelos meios de comunicação de massa. Nesse contexto, é compreensível que o brasileiro, sem maior convivência histórica com a prática do canto coral, associe música de coro com cerimônias sacras, inclusive fúnubres, mesmo quando ouve um madrigal renascentista amoroso.


Com o objetivo de mudar a imagem, os gruops corais vên esboçando algumas iniciativas, como está fazendo a Confederação Brasileira de Coros, sediada em Novo Hamburgo (RS), que lançou recentemente a campanha “Cante Brasil em Coro”. Dentro de uma programação que prevê a realização de um congresso nacional de coros em Belo Horizonte, em julho de 92, a mudança institucional pretendida vai na direção dos valores sociais e cívicos do canto coletivo: integração, solidariedade, disciplina. Pega um amplo espectro, dos corais estudantis aos de empresa.


Uma corrente cada vez mais numerosa tenta mudar a imagem mudando o repertório. Ao invés das peças tradicionais da Idade Média e da Renascença, ou de períodos mais próximos, a preferência recai sobre a música popular urbana, geralmente em arranjos para quatro vozes. Damiano Cozzella é o pai da matéria, e os autores mais visados são Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano. Há coros que misturam os dois repertórios, mas vários grupos acabaram se dedicando exclusivamente à área da MPB e da pop music, como O Beijo e Garganta Profunda.


O Garganta Profunda não é propriamente um coral, mas um grupo vocal, embora com uma forção à base de quatro naipes. Remonta, entretanto, às experiências do Coral da Cultura Inglesa que, em 1981, apresentou a composição Cobras e Lagartos (Nestor de Hollando Cavalcanti – Hamilton Vaz Pereira) no Festival da Rede Globo. Sempre sob a direção de Marcos Leite, mudou depois o nome, sucessivamente, para Cobral Coral e Coro de Cobra, até se fixar definitivamente no repertório de arranjos de canções populares que é a característica do Garganta.


Mudar a cara do coro é a solução dos grupos que se preocupam com os aspectos visuais e cênicos. Abandonam as batas e trajes solenes, e vestem jeans ou roupas esportivas. Conforme o repertório, adotam modelos característicos: o Coralusp (grupo Indaka) faz uso de vestuário nativo estilizado para apresentar música indígena. Com orientação coreográfica, abandona ainda a postura estática no palco, para desenvolver movimentações ilustrativas de danças primitivas. Passa a ser usual, nos grupos que cantam MPB, seus componentes dançarem aos balanços e requebros individuais ou evoluções coletivas.


Apesar de todas essas tentativas, o ouvinte comum parece assimilar no máximo dois tipos de coral. De um lado, o coro tradicional, sisudo e religioso, ao qual fica reservada a imagem de museu sonoro, na função de reviver o passado, como acontece com vários agrupamentos instrumentais datadas (banda medieval, orquestra de cordas do Barroco e, de certo modo, o quarteto de cordas clássico e a orquestra sinfônica).


De outro lado, está o coro jovem e descontraído que canta música popular, causa impressão agradável junto ao público mas que, passada a curiosidade despertada pela interpretação coral para canções populares, o ouvinte volta-se preferentemente para os nomes conhecidos do universo da MPB, que é o seu habitat original.


Há, entretanto, uma outra alternativa importante a ser considerada, que leva em conta a função estética historicamente desempenhada pelos corais. Embora servindo aos propósitos da ordem religiosa, o coral tornou-se o instrumento natural de evolução da linguagem musical ocidental. Desde a formação embrionária do moteto até a simplicidade construtiva de Palestrina e o emaranhado polifônico de Ockeghem, o coral foi o intérprete e porta-voz das inovações musicais. Mesmo após o advento da música instrumental, o coral continuou sendo responsável por considerável produção de obras significativas.


Existem alguns grupos, uma vertente minoritária, que perseguem essa via histórica, de ser o canal de expressão e divulgação de novas propostas estéticas, no campo da criação musical erudita. É o caso do Madrigal Ars Viva, por exemplo, que revelou importantes composições de Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira, pioneiros da utilização de procedimentos aleatórios e microtonais na música coral brasileira. O coral do Museu Lasar Segall (com Marco Antônio da Silva Ramos), o Coral da Aliança Francesa em São Paulo (com Mara Campos) e o extinto madrigal Klaus-Dieter Wolff (com Lutero Rodrigues) são representantes dessa linha que privilegia trabalhos experimentais. E que não exclui os recursos visuais e cênicos, desde que integrados formal e estruturalmente à criação artística, como ocorre no teatro musical.


No momento em que a imagem, e conseqüentemente o significadom do canto coral, está sendo questionada pelos próprios grupos, cairia bem uma reflexão sobre esta última alternativa, pois os corais parecem ter perdido a consciência crítica de seu papel histórico. Há muito mais para os coros realizarem, muitos espaços importantes a conquistar, do que ficar oscilando, na cena natalina, entre o resgate do passado no coro da igreja e a apresentação passageira na estação do metrö, ou na passarela do shopping.

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