top of page

Desculpe pela primeira parte


Artigo publicado no jornal A Tribuna de Santos, em 17/08/1985

 

 

Eleazar de Carvalho, Hans-Joachim Koellreutter e Armando Albuquerque são alguns dos poucos nomes que figuram como sócios honorários da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, distinção conferida basicamente àqueles cujo trabalho representa contribuição expressiva e marcante à nossa música erudita.


Mas além desse tipo de atividade – que se estendeu a muitas organizações, como a Sociedade Artística Internacional, à Ordem dos Músicos do Brasil e à própria Sociedade Brasileira de Música Contemporânea – Siqueira desenvolveu ainda intensa produção nas áreas de Educação, Crítica e Criação Musical.


Tudo isso está devidamente incorporado à historiografia musical do Brasil, sua importância reconhecida e registrada em livros e enciclopédias, grande parte de sua obra gravada em discos. No entanto, como observa o musicólogo Vasco Mariz na História da Música no Brasil, várias peças pouco divulgadas “revelam uma faceta menos conhecida do compositor”, caracterizada por idéias de concepção mais discreta. Entre essas peças, Mariz cita invenções para oboé, clarinete e fagote e seis divertimentos para quinteto de sopro.


A apresentação em Santos, no último dia 10, do Quinteto de Sopros da Universidade Federal da Paraíba não poderia deixar, assim, de gerar certa expectativa ante a oportuna possibilidade de ouvirmos algumas das referidas composições, tocadas por um grupo originário do estado natal de Siqueira. Afinal, é tão rara a exibição por aqui de conjuntos de música erudita do Norte e Nordeste, e praticamente nula a divulgação da música produzida naquelas regiões, que um concerto desses assume importância fundamental para um intercâmbio cultural. E a iniciativa do MUSA em viabilizar a apresentação do Quinteto na Cidade merece, portanto, todos os aplausos.


Entretanto, e por incrível que possa parecer, o repertório realizado não incluía nenhumas dessas peças de Siqueira, nem qualquer outra das muitas que ele escreveu para quinteto de sopro, como a primeira e a segunda suíte Cantigas Folclóricas do Brasil ou o Primeiro Quinteto. E, mais frustrante ainda, não incluía nenhum autor daquela região. É de se supor, até com boa dose de certeza, que exista lá uma produção musical erudita a ser mostrada, do presente e do passado.


Só para efeito de citação e para não recorrer ao exemplo das pesquisas que descobriram o passado musical de Minas, veja-se o caso do Maranhão, com o levantamento feito pelo padre João Mohanna. Após um trabalho de quase 25 anos, iniciado na década de 50, ele reuniu um acervo de cerca de 1500 composições escritas por compositores maranhenses dos quais não se tinha a menor informação. O resultado dessa pesquisa está relatado no livro A Grande Música do Maranhão e já foi gravado um disco (Música Maranhense Erudita), com peças para canto e piano de quatro autores.


Não se justifica, desta forma, a ausência de autores locais no repertório programado. A falta de preocupação nesse sentido evidencia até um descompromisso do grupo em relação ao papel de divulgador que todo artista desempenha. É como se a apresentação ficasse centralizada não no conteúdo do concerto, na música em si, mas antes na exibição da competência e das qualidades técnicas dos instrumentistas. No que, aliás, o nível foi dos melhores.


Mas deixemos de lado o que poderia ter sido programado, para falar algo sobre o repertório efetivamente apresentado. A primeira parte do recital trouxe o conhecido Trio de Vivaldi, para flauta, oboé e fagote, e duas peças de compositores do século XX: Jacques Ibert e Jean Français. A segunda parte foi dedicada a arranjos de canções populares, de Rapaziada do Brás ao Tico-Tico no Fubá.

Não vamos nem entrar no mérito dos arranjos, cuja sonoridade tenta, mas não consegue, chegar perto das orquestrações do século passado, das valsas, polcas e dobrados; e, por outro lado, ficam mais longe ainda da vibração da execução popular (que distância entre o arranjo de André de Sapato Novo e a criação de Jacob do Bandolim!)


O que parece mais importante aqui é refletir um pouco sobre essa mistura de música erudita e popular que vem se tornando habitual nos concertos corais, sinfônicos e até camerísticos, pelo exemplo do Quinteto. E questionar: por que isso? Há realmente necessidade dessa mistura? Qual o objetivo: tornar mais acessível o concerto, mostrar versatilidade, demonstrar a inexistência de preconceitos musicais?


Se for isso, não é por aí o caminho. O que se sente, no fundo, na base desses repertórios populares é quase um sentimento de culpa, como se um programa inteiramente erudito fosse coisa fora de propósito, de desagrado do público. A segunda parte seria, então, com músicas mais amenas, viria contrabalançar a aridez da primeira parte, como um pedido de desculpas pela execução de obras que, compreendam por favor senhoras e senhores, um grupo de música erudita não poderia se furtar ao dever de executar.


No caso do Quinteto de Sopros da Universidade Federal da Paraíba, o equívoco infelizmente foi duplo e o pedido de desculpas deveria se estender ao programa inteiro, pela ausência de autores da terra que representa.




Comments


gil_nuno_vaz_wix.jpg

A    B    C    D    E    F    G    H        K    L    M    N    O    P    Q      S    T    U    V    W    X    Y    Z

logo_cine_ines.jpg
bottom of page