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O Gandula


Primeiro Tempo


Tu já tá olhando pra ele faz um tempo. Um papagaio, uma pipa, enorme, deve ser. De um azul escuro, um colorido quase roxo. Atravessado pela luz do sol, até parece uma estrela, brilhando forte no meio de uma tarde de domingo. Às vezes parece que tá parado, às vezes ondula. Joga pra direita, pra esquerda. Desce um pouco, sobe. De repente... Tu viu? Olha bem, presta atenção. É então que tu te dá conta. Tu já percebeu. Tá caindo. Tu fica ali, observando a trajetória da queda. Tu, não sabe como, intui que estão empinando de algum ponto não muito longe de onde tu mora, a Praça Olímpio Lima. Talvez do Marapé ou do Campo Grande, algum ponto entre o Canal Um e o Dois. Arrastado pelo vento, o papagaio vai na direção do outro lado da Vila Belmiro. Aí tu te lembra daquela vez em que, numa distração enquanto empinava teu papagaio, o cordão te escapou por entre os dedos. Tu te lembra do desespero, correndo atrás do papagaio em queda. E do teu contentamento alegria felicidade quando a linha tocou o chão, duas ou três quadras depois, e tu conseguiu retomar a pipa em pleno voo. Tu pensa, então, que, se o cordão desse papagaio imenso se soltou, ou rompeu, perto de onde estavam empinando, ele iria tocar o chão por ali mesmo, pertinho de casa. Seguindo a intuição, tu vai andando em direção ao campo da Americana, na outra quadra. Já no meio do caminho, tu começa a avistar o fio, quase na altura dos telhados. Percebe que o fio deve atingir o chão lá dentro do campo. Tu pula o muro, depois a pequena cerca que circunda o campo, corre para o meio do gramado e consegue segurar o cordão. Fica segurando até sentir o tranco, quando a corda retesa. Tu é quase arrastado. Mas segura firme, com todo o empenho na façanha que tu acaba de realizar. O papagaio pára lá em cima, uma posição não muito distante nem muito alta, quase se escondendo por detrás dos telhados das casas. Tu começa a controlar a posição, empinando com cuidado, até ele se erguer ligeiramente. Tu fica assim durante alguns minutos, desfrutando do comando que tu acaba de conquistar. Então, algumas pessoas entram no campo, também pulando o muro, arfando, esbaforidas. É o pessoal que empinava e perdeu o papagaio. Perguntam como é que tu tinha feito aquilo. Tu conta a pequena aventura, e passa o cordão para eles, que vão puxando de volta o papagaio até pousá-lo ali no campo da Americana. É mesmo um papagaio imenso, ou, pelo menos, é a impressão que te fica, para o teu tamanho de criança. Recolhem a pipa, agradecem e vão embora, contentes alegres felizes. Tu fica ali parado ainda durante certo tempo, sozinho, no centro daquele imenso campo, vazio àquela hora da tarde de domingo, um estádio de futebol amador, quase um futebol de várzea. Mais tarde, em casa, teu irmão mais velho, que fora ao Estádio Urbano Caldeira, para assistir ao jogo do Santos com o São Paulo, conta que, no meio da partida, do nada, começa a aparecer no alto um papagaio imenso. Ele vai caindo, caindo em direção ao meio do gramado. A torcida praticamente pára, esperando ver o papagaio aterrissar. A partida certamente teria que ser interrompida. No entanto, quando está bem perto, um pouco acima do topo das arquibancadas, paira lá em cima. Durante alguns minutos fica assim, estático, planando, depois sobe um pouco, e logo em seguida ganha de novo as alturas, e desaparece por detrás dos muros do estádio. Tu conta então que foi tu quem tinha impedido a queda do papagaio. Mas parece que ninguém em casa acredita. Afinal, quem era o dono do papagaio? Ninguém te deu nem uns trocados, em agradecimento? E a tua incrível façanha morre por ali mesmo. Ou melhor, fica só na tua cabeça.


Segundo Tempo


Em setembro de 54, a família deixa a casa da praça Olímpio Lima e vai morar na Oliveira Lima, uma ruazinha estreita, curta e curva, quase encostada no campo do Santos. No ano seguinte, tu vai pra escola. E todos os dias tu percorre a Rua Princesa Isabel até o Canal Um, na esquina com a Carvalho de Mendonça, pra fazer o primário no Colégio Olavo Bilac. Nome de poeta que, mais tarde tu iria saber, escreveu ora, direis, ouvir estrelas. Ao longo dos anos, tu vê os jogadores do Santos, andando por aquelas ruas, às vezes jogando conversa fora: Manga, Del Vecchio, Ramiro, Álvaro, Pagão, Pepe, Zito, Pelé. O tempo passa, de criança tu vira adolescente. Tu e mais uma pá de moleques que costumam tirar uma pelada, toda tarde de domingo, em frente aos portões de entrada do Santos e do cinema, na esquina da Princesa Isabel com a Tiradentes, onde o estádio faz uma curva e abre generoso espaço no calçadão. Quando não tem jogo na Vila, ali vira o campinho do futebol da molecada. Tu cisma em jogar por pura teimosia. Tu não é bom de bola. Na verdade, tu não leva jeito pra esporte nenhum. E aí vem aquela gozação, na hora de escalar os times. De que lado tu quer jogar? Tu faz questão de lado? Não? Então, joga do lado de fora. A gente tá precisando mesmo de um gandula. E tu nem sabe o que é um gandula. Afinal, tu nem gosta de futebol. Se tu foi duas ou três vezes ver um jogo na vila já é muito. Mas logo esse tempo fica pra trás. Tu vai trabalhar de dia, estudar de noite. Depois, tu te muda pra outro bairro, mais distante, a Vila fica na mente. E a vida segue em frente. De repente, tu já tem tua gente. É o que dizem, o mundo, essa bola imensa, dá voltas. E tá lá tu de novo jogando bola. Duas crianças. A bola troca de pé, ou de mão, tanto faz, meio a esmo. A falta de habilidade com a bola é genética, hereditária. Mas não, pelo menos, com a bola da cachola. Porque no pensamento, nesse vai e vem, a bola da ideia rebola a bola do mundo. E aí a bola, na curta viagem pelo espaço aéreo entre as duas crianças, já não é mais uma bola. É um papagaio em queda, é uma estrela cadente. E aí a ficha te cai. Tu pensa no campo da Americana. Cadê o velho campo, salão de futebol ao ar livre que tu invadiu, gandula de objetos voadores? Não existe mais? Virou escola, salas com janelas abertas para as estrelas, num céu de onde caem papagaios e bolas. Não, tu percebe, o campo continua ali. Dá pra sentir. E tu, ali, continua o mesmo. Menino poeta na escuta de estrelas cadentes, como Bilac, à cata de ideias vadias e errantes, gandulos do espaço. E as ideias não são chutadas como bolas para fora do campo. Não é bem assim que acontece. Não existe um lugar fora do campo. Existem campos. Um provável Campo Grande, na origem. Um campo da Americana que se faz presente. Um futuro possível campo do Santos, no destino. As bolas apenas se projetam em outros campos. E é lá que elas vão cair. Dentro do teu campo. E tu sai correndo para apanhar, pronto para devolver, cada bola, ao campo de onde saiu. Só que na volta essa bola já não é mais a mesma. Sobre ela, tu já colocou as tuas mãos. E ela levará para sempre, ainda que escondidas nas entranhas dos gomos, as tuas impressões digitais.


Prorrogação


Décadas futuras, numa livraria do Gonzaga, tu folheia casualmente uma revista sobre o Santos Futebol Clube. E tu nota o registro de um jogo na Vila entre o time santista e o São Paulo Futebol Clube, no dia 24 de janeiro de 1954, um domingo. Aí tu pensa, será que foi esse o dia do papagaio? Então, por curiosidade, tu faz uma pesquisa nos arquivos do jornal da cidade, para ver se encontra alguma notícia nas páginas esportivas. Não consegue encontrar nada. Assumindo a possibilidade de ter sido outro dia, tu consulta ainda edições de datas próximas. Nem uma palavra. Aí, cinquenta e poucos anos depois do ocorrido, tu pergunta a teu irmão se ele lembra do fato. Do papagaio quase caindo no campo do Santos, que ele havia contado em casa. Ele diz que não, que não se lembra de nada disso. E daí, tua façanha morre pela segunda vez? Continua apenas na tua cabeça? Tu não sabe. Mas, também, o que isso importa? A essa altura do campeonato, esse estranho jogo da velha vila já havia feito a sua parte, o seu efeito. Já havia te constituído, por toda a vida, em discreto gandula na várzea infinita do universo.

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