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Na Rolança das Águas


Por volta do final da década de 70, ou talvez início dos anos 80, comprei o livro Na Rolança do Tempo, uma seleção de crônicas de Mário Lago. Não cheguei a ler, pois um amigo pediu emprestado e o livro nunca mais voltou.


Eu sempre admirei Mário Lago pelo "conjunto da obra", isto é, pela versatilidade e pluralidade criativa: ator, escritor, letrista, compositor. Gostava também de sua posição política, que aliás foi o principal, se não único, motivo do interesse em Mário Lago por esse amigo que me levou o livro.


Pouco tempo depois, um colega de trabalho, advogado, que vinha publicando artigos sobre literatura e música popular brasileiras no jornal O Estado de S. Paulo, aproveitou uma ida a serviço ao Rio de Janeiro para tentar uma entrevista com Mário Lago, interessado principalmente em informações sobre Orlando Silva. E eu aproveitei a oportunidade para pedir que, se possível, ele fosse portador de uma poesia que eu havia escrito (Na Rolança das Águas), em que busquei representar a criatividade de Mário Lago como o curso irrefreável das águas, associando nessa ideia o nome dele e o título daquele livro.


Meu colega não chegou a entregar o texto, pois o contato acabou sendo feito por telefone. Perdida a oportunidade, achei melhor simplesmente deixar a poesia na gaveta. Vez ou outra, lembrava do texto e me ocorria o desejo de experimentá-lo com música, não necessariamente uma canção. Algumas tentativas não foram bem sucedidas e desisti.


Quase quarenta anos depois, revendo dois programas de televisão, esse desejo ficou mais forte e plausível.


Um programa foi o Ensaio, produção de Fernando Faro na RTC (Rádio e Televisão Cultura), em que Mário Lago, a um certo momento, confessa que fez, na música também, "tentativazinhas de valsa e, principalmente... vamos dizer assim, de libertação. Eu sempre tinha composto em parceria... estava sempre ligado a um parceiro... e de repente eu comecei a fazer dentro de mim uns sentimentos nativistas, fazer umas coisas sozinho. E gravei com o (Carlos) Galhardo algumas coisas sozinho..."


Uma dessas "coisas" era a valsa Devolve, em que a frase inicial, após duas figurações ondulantes, começa um movimento de saltos ascendentes, em que os intervalos vão se dilatando a partir da mesma nota de base. E a melodia, com isso, extrapola a quadratura habitual do fraseado em quatro e oito compassos, acrescentando mais dois compassos à frase musical. Gostava muito disso.


No mesmo programa, cita uma composição dele (música e letra) que nunca foi gravada, cuja letra fez sob influência de outro Mário, o Sá-Carneiro: "um dia eu fiz uma valsinha, que seria a menor, mais rápida música popular que já se viu... uma valsinha chamada Cantiguinha Tristezíssima..."


o que sonhei / fique por lá / só há / o que ganhei /

o meu viver / esse onde estou / errou / no verbo ser /

o que sonhou / o meu serei / não sei /

nem sei meu sou /

só sei que dói chegar assim ao fim sem é /

nem foi


O outro programa foi o Roda Viva, da mesma emissora. Aqui, ele confessa que o samba Número Um, feito em parceria com Benedicto Lacerda, é plágio de um tango.


O que me ocorreu ao ver o depoimento foi que o advogado embutido em Mário Lago (ele se formou em Direito por insistência materna, embora nunca haja exercido a profissão) parece ter ali falado mais alto que o artista. Porque a concepção de plágio é de ordem estritamente jurídica, com fins de proteger direitos autorais, ainda que com pretensões a estabelecer as fronteiras artísticas do que pode ou não ser considerado plágio. Não entrou no mérito desses limites, mas, ao cantarolar a canção portenha em que se baseou para escrever a letra de Número Um, fica claro que Número Um não é plágio daquele tango nem aqui nem na Argentina.


Bem, diante dessas considerações, retomei ânimo para novas tentativas de trazer aquela poesia para uma composição musical. Só que dessa vez a motivação já vinha direcionada. Assim como fizera com o texto, uma cópia (decupada) do nome dele, a música seria também uma derivação do compositor (do músico, não do letrista), pelo "plágio" de uma canção integralmente de sua autoria. Escolhi a valsa Devolve, especificamente o trecho da melodia inicial, usando de ostinato e de fragmentação dos saltos ascendentes, com um ligeiro prolongamento do fraseado original.


Essa escolha me pareceu bastante pertinente à questão do plágio, uma vez que foi objeto de consideração dele. Fica como reverência e respeito ao autor e à sua criação, embora a visão que creio mais substantiva seja a ótica da arte. E uma obra artística não perde valor estético por ser considerada juridicamente como plágio. Até porque é um procedimento de larga incidência em muitas culturas. De qualquer coleta historiográfica de composições musicais, mesmo que aleatória, certamente vai se reunir inúmeros casos de variações, orquestrações, paráfrases e outros processos que recorrem a temas predecessores.


Outro dado que me orientou na concepção da peça Na Rolança das Águas foi o relato de Mário Lago, com expressão nitidamente orgulhosa, sobre a façanha de ter criado o que considerava a mais curta música popular "que já se viu". Porque um dos aspectos que me motivam na composição é explorar os limites da percepção musical, e um deles é a extensão temporal.


Nesse intuito, já escrevi canções de cerca de dez segundos, e outras não tão radicais, mas sempre causando uma certa insatisfação na escuta, como se faltasse alguma coisa. Pude presenciar tal reação não apenas em ouvintes do público em geral, como também em compositores e intérpretes. Alguns destes chegaram a repetir algum trecho, como um ritornello, procurando talvez reforçar o equilíbrio estético com um contrapeso formal.


Na Rolança das Águas, então, segue essa senda de exploração perceptual, mas no caso espero que em conformidade com as expectativas do autor que estou, talvez de direito mas não de fato, a plagiar.





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