Artigo escrito a propósito de dois lançamentos de livros ocorridos em dezembro de 2024.
Nesta segunda semana de dezembro, separados por alguns dias, serão realizados em Santos dois lançamentos de livros com uma interessante conexão entre si, que remonta a algumas décadas.
Ambos vão acontecer na Livraria Realejo, à Avenida Marechal Deodoro, n. 2, no Gonzaga, em Santos.
O primeiro, na terça-feira dia 10, traz o livro NA MEDIDA DO IMPOSSÍVEL: Autobiografia de Katia Fonseca (Livrearte).
No outro, sexta-feira dia 13, vamos ter MAESTRO KLAUS-DIETER WOLFF: o coral, sua técnica e organização, idealizado e coordenado por Luiz Celso Rizzo (Ars Viva).
A ponta pretérita da conexão está no ato de fundação da sociedade que deu origem ao Madrigal Ars Viva. A ata da assembleia começa relatando que “aos vinte e nove dias do mês de abril do ano de 1961... reuniram-se numa dependência do Conservatório Lavignac, sito em Santos à Avenida Ana Costa, n. 267, os snrs. Klaus-Dieter Wolff... Gilberto Mendes... Dulce Fonseca...” entre outros nomes.
A terceira pessoa citada, a coralista Dulce Fonseca, era proprietária, em sociedade com Adriana Ribeiro, do Conservatório Lavignac, lugar cedido para o coral realizar os ensaios, onde aconteceram semanalmente, sábados à tarde e domingos pela manhã, até princípios da década seguinte.
Para Katia Fonseca, filha de Dulce, o maestro Klaus-Dieter Wolff, regente do Madrigal, tornou-se assim uma figura de grande familiaridade durante sua infância e adolescência. E era um contato que extrapolava o mundo da música.
Nos sentidos superior/inferior e esquerda/direita: Dulce Fonseca Dias Pinto e Adriana de Oliveira Ribeiro (Conservatório Lavignac) e o compositor Damiano Cozzella (III Festival Música Nova, 1964) / Maestro Klaus-Dieter Wolff regendo o Madrigal Ars Viva / Maurice Legeard caminhando pela rua interna da vila em que eram vizinhos da família de Katia Fonseca (o Conservatório Lavignac ficava próximo à saída ao fundo da imagem, na Av. Ana Costa) / Katia Fonseca e sua mãe, Dulce Fonseca.
O conservatório mantinha forte interação com entidades culturais da cidade, atuando em conjunto com outras atividades artísticas, principalmente com o Clube de Arte de Santos e o Clube de Cinema de Santos.
Em 1962, o Clube de Cinema desenvolveu no Conservatório Lavignac uma programação direcionada para crianças, coordenada por Ilka Brunhilde Laurito, responsável pelo Departamento Infantil da Cinemateca Brasileira. O irmão de Katia, Hugo Fonseca, envolvendo-se no projeto, chegou a participar da delegação santista ao II Simpósio dos Cineclubes Paulistas em Marília, junto com Maurice Legeard e Nilo Rovai.
Em depoimento dado em 2022 para uma pesquisa sobre os dois clubes, Katia relembrou que o Clube de Cinema fez sessões secretas no Lavignac na época da ditadura: “o Maurice Legeard morava na mesma vila que nós (em frente ao Lavignac) e minha mãe era muito amiga dele e da mulher dele. Então, minha mãe e a Adriana cederam o salão, nos fundos, onde aconteciam as sessões. Eram realizadas no começo da noite. A casa toda ficava no escuro e, mesmo estando nos fundos, precisávamos ficar em silêncio e à luz de velas enquanto a sessão não começava. O público era orientado a ir chegando aos poucos - 2 ou 3 pessoas de cada vez, com um certo intervalo de tempo. Isso era para não dar na vista de que ali estaria acontecendo algum evento. Todo esse procedimento deixava o tempo das sessões bem longo - até todos chegarem, se acomodarem etc. Antes da projeção propriamente dita, havia a explicação sobre o que iríamos ver e, no final, abria-se um debate. Mas tudo tinha que ser feito em volume de voz bem baixo. Para tanto, as pessoas sentavam muito perto umas das outras.”
Klaus-Dieter Wolff aliava o rigor musical herdado da tradição germânica a uma generosa flexibilidade estética para as experimentações formais que compositores como Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira vinham elaborando, influenciados por correntes vanguardistas da época.
Com isso, o coral desenvolveu uma inusitada habilidade em conciliar repertórios de tempos remotos (Idade Média, Renascença) com novas e ousadas concepções musicais, tornando-se conhecido e reconhecido no cenário da música brasileira.
Dono de aprumada técnica de regência, Klaus preocupou-se em transmitir a emergentes maestros corais ensinamentos extraídos de sua densa vivência na condução de coros. Ministrou alguns (poucos) cursos, em que suas recomendações eram dadas verbalmente e exercitadas no processo de aprendizagem. Um de seus alunos, Walter Maluf, teve a preocupação de anotar, fazer apontamentos sobre o que era transmitido.
Há cerca de cinco anos, Luiz Celso Rizzo, compositor e maestro, sugeriu que as anotações poderiam ser a base de um livro que destacasse a importância desse material para o movimento coral atual.
E assim se lançou à empreitada de produzir o livro sobre a técnica e organização de corais, a partir das orientações de Klaus-Dieter Wolff, e complementado por escritos de artistas que desenvolveram suas carreiras tendo o maestro como importante referência.
A ponta atual da conexão começa assim há cinco anos, na mesma época em que Katia Fonseca se lançava a escrever sua autobiografia, trajetória que vai do jornalismo ao teatro e ao ativismo em diversas frentes.
Katia formou-se em Jornalismo na turma de 1983 da antiga FACOS – Faculdade de Comunicação Social, trabalhando em vários órgãos da imprensa, radicando-se enfim na cidade de Campinas.
Nesta semana, essas duas figuras, Katia Fonseca, presencialmente, e Klaus-Dieter Wolff, em memória, voltam a frequentar um mesmo ambiente, agora a Realejo.
De um conservatório a uma livraria, de um entorno marcado por um emergente Festival Música Nova a um ponto de encontro que se expande para um evento como a Tarrafa Literária, o presente parece evocar, em outro diapasão, um passado de espaços combativos e resistentes da cultura local.
E, na especial conexão entre Katia e Klaus, com o toque adicional da pertinente coincidência de uma livraria cujo nome remete a um objeto musical.
Gil, muito obrigado por essa matéria e colaboração na divulgação. Abraço. Luiz Celso