Artigo publicado no jornal A Tribuna, de Santos, em 19/04/1997.
O filme era a terceira sessão do ciclo Revisão do Cinema Moderno, com exibição aos sábados às 14 horas no Cine Indaiá-Arte.
Na tentativa de estimular o interesse público, os cineclubistas mais afetos à escrita crítica preparariam, cada qual, um artigo sobre um dos filmes, a ser publicado no jornal A Tribuna, no dia da sessão respectiva.
Como me ficou reservado o filme O Incrível Exército de Brancaleone, ocorreu de fazer um trocadilho de "exército" por "exercício" e a substituição de Brancaleone pelo nome do ciclo (Revisão do Cinema Moderno). Porque se tratava, de fato, de refletir sobre a tenacidade de Maurice Legeard, que ainda encontrava forças para o ativismo cultural, mesmo debilitado pelo sério problema de saúde que já prenunciava a morte próxima. O que ocorreu no domingo seguinte à oitava e última sessão, uma vez que o ciclo foi suspenso em seguida pela Secretaria de Cultura do município.
Este incrível exercício de revisão do cinema moderno
Gil Nuno Vaz
Incrível a realização desse ciclo de Revisão do Cinema Moderno que a Cinemateca está promovendo, aos sábados, no Cine Indaiá. Incrível pela resistência cultural do Maurice Legeard, do Everaldo Ferraz e do Francisco Rienzi, que cuidam da programação. Incrível pela arte do Argemiro Antunes, o Miro, que já virou padrão gráfico da Cinemateca. Incrível pela presença da Carol, sinal de que nem tudo está perdido. Pela reduzida mas constante platéia, pelos pequenos mas importantes apoios.
Mais incrível ainda por acontecer numa época em que parece não haver mais espaço para a reflexão crítica. Afinal, para que se preocupar em fazer uma revisão do cinema moderno quando já não existe arte cinematográfica e sim cinema de "entretenimento", com filmes financiados por grandes marcas internacionais em troca de merchandising? É isso que disse o renomado publicitário Francesc Petit, em recente manifestação contra as restrições à propaganda de cigarros e à sensualidade em comerciais, afirmando que arte hoje é coisa para ingênuos, cineastas que realizam filmes que ninguém patrocina nem exibe, e muito menos recebem Oscar.
Incrível porque, afinal, o ciclo surge exatamente no começo de abril, em plena época da entrega do Oscar. Enquanto os cartazes das salas de cinema exibem ostensivamente as produções premiadas, a Cinemateca prossegue discretamente a sua proposta crítica. Já passou Terra e Liberdade, produção inglesa de 1995, dirigida por Ken Loach, e Martha, de 1973, do alemão Rainer Werner Fassbinder.
O ciclo continua hoje com a apresentação de um filme ambientado na época das cruzadas, O Incrível Exército de Brancaleone, produção ítalo-franco-espanhola dirigida por Mario Monicelli em 1966. E por falar em "arte cinematográfica" e "cinema de entretenimento", este filme tem uma sequência muito interessante que seria retomada quase trinta anos depois, com adaptação de contexto, por um filme vencedor do Oscar, Forrest Gump.
Nesse filme, o personagem interpretado por Tom Hanks, após uma recusa amorosa, resolve sair correndo pelas ruas da cidade, depois pega uma estrada, vai até uma outra cidade, e depois até outra, passa por alguns estados, atravessa o país. Nessa cruzada, leva consigo uma legião de pessoas, que vão se juntando e correndo atrás do líder, em solidariedade e adesão à atitude de protesto, pois é preciso contestar o sistema, fazer uma revisão de conceitos. De repente, o puxador do bloco se cansa, pára de correr, decide voltar para casa. E como é que fica o seguidor do movimento, aquele idealista integrante desse exército de cidadãos engajados na causa?
Fica como o espectador típico dos filmes de Oscar, consumidor contumaz dos filmes promovidos pela poderosa indústria cinematográfica norte-americana. Fica sem alternativa. Em princípio, tem à sua disposição milhares de filmes, que as locadoras de video expõem em prateleiras setorizadas conforme o gênero: aventura, suspense, terror, policial, drama, comédia, infantil. Vá entretanto querer algo diferente. Outro dia, fui a uma locadora e perguntei sobre a fita de O Incrível Exército de Brancaleone. Tinha sido vendida a um cliente. Estava mofando na prateleira, só uns dois ou três alugaram.
A solução hoje está apenas em programações especiais que só acontecem em grandes centros, ou em cidades médias teimosas como Santos. Nessas condições ainda é possível tomar contato a produção cinematográfica de outros países, fora do circuito dominado pela indústria norte-americana, e que ainda procuram a expressão artística. Paradoxalmente, ou quem sabe como reação cultural, a vitalidade desses produtores é impressionante, apesar das dificuldades de exibição e distribuição.
Daí a importância de mais essa cruzada cultural, modesta mas determinada. Uma programação que inclui ainda o cinema russo, japonês, iraniano, francês, holandês e, evidentemente, o brasileiro. Para tentar oferecer uma alternativa para quem já percebeu ou está percebendo o estrangulamento de suas opções culturais, e que isso é feito disfarçadamente sob o rótulo da liberdade de escolha.
Se você ainda não foi ao ciclo, hoje pode ser um bom começo, com essa obra magistral de Monicelli, autor também do ainda recente Parente é Serpente, entre outros. É só sentar, relaxar e assistir a irrevente e instigante cruzada de Brancaleone. E entrar no espírito da coisa, do bravo canto da tropa: Branca, Branca, Branca. Leon, Leon, Leon...
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