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Canal 0: Voo de Pássaro sobre a Orla


Epígrafe



À memória que pressente o passado: origens.




Tu... que me lês, que me vês, que me ouves, que me sentes. Ou tu... que me lês, mas não me vês, não me ouves, não me sentes. Ou ainda tu... que não me lês, mas me vês, e não me ouves nem me sentes. Ou talvez tu... que não me lês, nem me vês, nem me sentes, mas me ouves. Ou quem sabe tu... que me sentes, mas não me lês, nem me ouves, nem me vês. E por que não tu... ?






Canal 0 - Voo de Pássaro sobre a Orla: epígrafe (vídeo inserido no intróito do Canal 0 do inextrato NOVENADAVIDA)


O futuro que pressente o passado: um sobrevoo na orla das realidades.


Tu... que me lês, que me vês, que me ouves, que me sentes. Ou tu... que me lês, mas não me vês, não me ouves, não me sentes. Ou ainda tu... que não me lês, mas me vês, e não me ouves nem me sentes. Ou talvez tu... que não me lês, nem me vês, nem me sentes, mas me ouves. Ou quem sabe tu... que me sentes, mas não me lês, nem me ouves, nem me vês. E por que não tu... ?


Tu... que me perguntas o meu nome. E eu te respondo: Eu Sou O Que Não Sou. Ou Seja: Eu Não Sou.

Assim como tu talvez não sejas.


Eu sei que tu tá estranhando. Como? Canal Zero? Não existe. Pois é. Realmente. Não é real. Mas o que é real? O real mente? Pois não é?

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NA ANTE SALA


Bom dia. / Esperou que a atendente terminasse uma anotação na agenda. / Vim para uma reunião com o Auditor-Mor. Às dez. / Sem tirar os olhos da agenda: / Nome? / Nihil. / Levantou os seus olhos, fitando os dele. Expressão de que alguma coisa parecia não fazer sentido. Alguns segundos depois: / Ah, sim... / E voltou a consultar a agenda. / Nihil Ultra, às dez. / Justificou: / É que temos um outro Nihil. Mas, às onze. Nihil Obstat. Confundi os nomes e horários. / Pediu desculpas. / Estou dentro do horário, então? / Sim, claro. Não só no horário, mas oportunamente antecipado. /
























O Auditor-Mor pediu que tome conhecimento destes dois volumes aqui, antes da reunião.

Estendeu a mão sob a mesa, abrindo uma gaveta, e retirou de lá dois livros.

Passou-lhe, quase jogando-os em sua direção, dois encorpados volumes.

Obrigado, respondeu Nihil, buscando com o olhar uma poltrona onde pudesse sentar para abrir e folhear com atenção os livros.

Aguardo então ser chamado?, indagou. 

Sim, por favor, tem ainda meia hora para um breve exame desses dois volumes.

Escolhendo uma poltrona discretamente disposta em um dos cantos do saguão, abriu o primeiro livro, intitulado Plano de Cantos. Não era bem um livro, mas quase um caderno. Já havia tomado contato com ele. Isto é, não propriamente com essa brochura, mas com uma espécie de referência a ela, o simulacro de um livro de Contas Correntes que encontrara dentro de um envelope, transfigurado em correspondência, portador da mensagem que o convocara. Logo na primeira página deparou com um texto disposto em forma de poesia:

Os sete canais de Santos, sete cantos correntes,
torrentes de memórias, muitas histórias,
fluxos de notas, sete
como no antigo hino do joão josé menino
à ponta da praia,
que espraia a escala
em graus do mar para os grãos da areia.

Não conseguiu captar nenhum sentido especial nas alusões extraídas a partir dos canais de irrigação com que o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito marcara a paisagem urbana de Santos desde inícios do século vinte. Prosseguindo a leitura, estranhou ainda mais o que lhe pareceu uma incoerência, pois encontrara um aviso, em tom misto entre cautelosa recomendação e incisivo alerta, para que identificasse os possíveis cantos que perpassariam os nove canais. Nove, não sete, como o texto apontava. Havia ainda um Canal Zero e um Canal N, além dos sete cantos correntes.
Parou um pouco para refletir sobre uma hipótese, que o acometera, de vinculação entre seu nome, Nihil, e os dois canais adicionais. Nihil é nada. Zero é nada? Nihil é Zero? E o N de Canal N seria o mesmo N de Nihil?

Tinha pouco tempo para se dedicar a tais suposições. Seria mais um vôo de pássaro sobre a orla, mal dando para pairar sobre cada canal. Por isso, continuou a folhear o primeiro livro, e deparou com algumas observações e anotações, todas incompletas. Deduziu que estava ali o desafio que o Auditor-Mor lhe propunha.

Ensaiou ainda passar uma vista de olhos no segundo volume, pois o tempo que lhe restava estava ficando exíguo. Bem, acho que isso é tudo, pensou e imediatamente sentiu que não, certamente não era. Deveria ter muito mais, mas é o que ficaria por fazer. E aí talvez não bastassem apenas os autos. Eles poderiam ser somente registros frios, pistas fugazes de fatos e atores, escapando aos sensores limitados da escrita, que demorariam a esquentar no mapa térmico da realidade. Seriam, apenas, pontos de partida. Contudo, no universo contábil das partidas dobradas, rastrear o histórico de algo haveria por certo de retornar ao auto original, revelando novos elementos, novos contextos, nuanças. Foi com essa crença, ou talvez esperança, que iria se lançar ao trabalho. Aos lançamentos.
Nessa altura, o pensamento foi cortado pela voz da recepcionista.

Sr. Nihil, o Auditor-Mor está à sua espera. Por favor.

Lá dentro, percebeu que não era bem como estava imaginando. Fora destacado para uma auditoria em conjunto com uma colega de outra equipe da organização, que desconhecia.






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