A escolástica letra de Rosa
- Cantos Correntes
- 23 de fev. de 2023
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Atualizado: há 3 dias

Numa espécie de contra-ataque artístico, em resposta à indiferença, quando não à desconsideração, com que os vizinhos tratam valores locais (afinal, santo de casa não faz milagre), ABZeh decidiu radicalizar o repertório. Tomou um desvio do lírico, às vezes épico, para o crítico, irônico e... pretensamente, cômico. Com duvidosa efetividade, ressalte-se.
Uma dessas investidas resultou algo no espírito de uma valsa do mestiço doido. Não no sentido de uma letra non sense, como se diz do samba emulado, o do criolo de Ponte Preta. Que, na verdade, retirado o véu da aparente confusão historiográfica, embutia uma crítica ácida ao regime de exceção que o Brasil vivia na época.
Muito menos do non sense atribuído à letra da famosa valsa tomada como referência, de estilo barrococó, uma sucessão exagerada, despropositada, de adjetivos pomposos. O que, muitos entendiam, refletia a incompetência literária do autor, e por isso reputado em alguns círculos da crítica literária como improvável parceiro de Pixinguinha em Rosa, ex-Evocação.
ABZeh decidiu criar outra gênese e, em consequência, outra realidade artística para a valsa.
EVOCAÇÃO DA HISTÓRIA
O desvio tomado por ABZeh começou pela via da história. O primeiro viés foi sobre o autor da letra de Rosa. Era - ou seria, segundo aqueles que não convalidam a veracidade da atribuição - um mecânico chamado Otávio de Souza. Morador do Engenho de Dentro, diz-se que conheceu Pixinguinha num bar do Méier, bairro nas imediações daquela área suburbana do Rio de Janeiro, na primeira quadra do século 20. Na época, Rosa ainda era Evocação. Uma peça musical sem letra, instrumental.
Ouvindo a valsa, gravada por Pixinguinha em 1917, Otávio teria se inspirado nos contornos da melodia para escrever uma poesia. Uma versão diferente conta que a letra homenageava a irmã de "um certo Moacir dos Telégrafos, cantor do bairro". Otávio aproveitou o ensejo da presença do autor para submeter o texto à sua apreciação.
Não teria sido uma experiência de iniciante. Refere-se que Otávio já rabiscava canções próprias nas horas vagas. Embora nunca qualquer outra eventual criação sua tenha sido dada a conhecer, os contestadores da autoria argumentam que o mecânico não possuía estofo literário para realizar tal façanha. Posição crítica que não escapa a uma curiosa oposição crítica. Afinal, como duvidar da "façanha" se a consideram presunçosamente rebuscada e parnasiana? Apostam então numa hipótese plausível para a esdrúxula situação. Apontam que o mecânico escrevera aquele texto como sofrível imitação do estilo do poeta Cândido das Neves, o Índio, parceiro de Pixinguinha. Tudo isso teria acontecido então na primeira metade dos anos de 1930, pouco antes da morte de Índio (1934) e do próprio Otávio, pela implicação da informação de que teria "falecido muito jovem".
É aí que entra o viés da história, conforme a versão de ABZeh.
A história teria início em 1899, com a morte de um cidadão santista chamado João Octávio dos Santos.
Era filho bastardo de um dos integrantes de proeminente família da cidade, os Nébias, com uma escrava de nome Escolástica Rosa. O pai de Octávio viria a ser conhecido pela referência a um dos títulos que ostentou no Brasil imperial, com o qual virou nome de rua, após sua morte: o Conselheiro Nébias.
Gilberto Mendes (Cons. Nébias, 809 e Valdomiro Silveira)
Em 1° de janeiro de 1908 foi inaugurado o Instituto Dona Escolástica Rosa, uma das instituições de ensino mais tradicionais da cidade de Santos. Idealizado por João Octávio dos Santos, o local foi criado para abrigar meninos em situação de vulnerabilidade social na cidade, que deveriam receber educação e formação profissionalizante.
Dentre os diversos fatos que marcaram a história da instituição, destaca-se que em 1933, o Dr. Armando de Sales Oliveira, então interventor federal no Estado, promulgou o Decreto nº 6.222, que criava a Escola Profissional Secundária Mista (meninos e meninas) em Santos. No
dia seguinte, Dr. Valdomiro Silveira, secretário da Educação e Saúde Pública, firmou o contrato com a Irmandade da Santa Casa de Santos, mantenedora da instituição, para a instalação e funcionamento da unidade escolar então criada. Desta forma, o Escolástica Rosa passou a oferecer um dos primeiros cursos técnicos profissionalizantes e oficias do país.
Tu és divina e graciosa
Estátua majestosa do amor
Por Deus esculturada
E formada com ardor
Da alma da mais linda flor
De mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor
Se Deus me fora tão clemente
Aqui nesse ambiente de luz
Formada numa tela deslumbrante e bela
Teu coração junto ao meu lanceado
Pregado e crucificado sobre a rósea cruz
Do arfante peito teu
Tu és a forma ideal
Estátua magistral. Oh, alma perenal
Do meu primeiro amor, sublime amor
Tu és de Deus a soberana flor
Tu és de Deus a criação
Que em todo coração sepultas um amor
O riso, a fé, a dor
Em sândalos olentes cheios de sabor
Em vozes tão dolentes como um sonho em flor
És láctea estrela
És mãe da realeza
És tudo enfim que tem de belo
Em todo resplendor da santa natureza
Perdão se ouso confessar-te
Eu hei de sempre amar-te
Oh flor meu peito não resiste
Oh meu Deus o quanto é triste
A incerteza de um amor
Que mais me faz penar em esperar
Em conduzir-te um dia
Ao pé do altar
Jurar, aos pés do onipotente
Em preces comoventes de dor
E receber a unção da tua gratidão
Depois de remir meus desejos
Em nuvens de beijos
Hei de envolver-te até meu padecer
De todo fenecer
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