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Ópera do Vintém


A Ópera do Vintém é uma história de ficção que conecta dois fatos reais, a partir da percepção de uma personagem política do período imperial do Brasil.


O primeiro fato é o evento que ficou conhecido como A Revolta do Vintém, ocorrido no dia primeiro de janeiro de 1880, no Rio de Janeiro. Desde dezembro de 1879, o povo reivindicava ao imperador, D. Pedro II, revogar a lei que aumentava o preço das passagens de bonde em 20 réis, ou um vintém.


O segundo é o evento denominado genericamente como jornadas de junho de 2013, deflagrado a partir de uma insatisfação popular com o aumento de 20 centavos na passagem dos ônibus urbanos, e que teve no dia 13 de junho seu ponto de maior tensão.


As duas datas, 01/01/1880 e 13/06/2013, ficaram marcadas pela ocorrência de enfrentamentos violentos entre manifestantes e policiais, trazendo graves consequências políticas.


A personagem histórica que conecta os dois eventos é José Bonifácio de Andrada e Silva, figura atuante em múltiplos setores da ação humana: ciência, literatura, educação e, principalmente, política.


Na trama ficcional da ópera, José Bonifácio retorna do exílio, desembarcando em Santos, sua cidade natal, no dia do seu aniversário, 13 de junho, mas no ano de 2013, quando a cidade celebra os 250 anos do seu nascimento.


Na Praça Mauá, em frente ao Paço Municipal, que leva o seu nome, ele presencia uma encenação teatral ao ar livre, ensaio in loco do espetáculo a estrear em setembro próximo, no feriado da Independência do Brasil. O título do espetáculo, com roteiro de Orleyd Faya e direção de Tanah Corrêa, é Ópera-Samba José Bonifácio de Andrada e Silva - Herói da Pátria e Patriarca da independência.


Em certo momento, a praça é ocupada por integrantes de uma grande mobilização social que eclodia simultaneamente em várias cidades do país. Misturando-se aos atores e atrizes que realizam o ensaio, os manifestantes protestam contra o aumento recente de 20 centavos em passagens de transporte urbano.


Se, em 1880, a Revolta do Vintém havia sido um dos pontos da escalada que levaria à queda do regime monárquico e instauração da república, o dia 13 de junho de 2013, na sequência das jornadas desse mês, ficaria marcado como o ponto de inflexão em que uma reivindicação social era transformada em manifestação política, cujas consequências levariam, três anos depois, ao impeachment de Dilma Roussef, eleita em 2014 para a Presidência da República.


A seguir, o libreto da Ópera do Vintém.


 

ÓPERA DO VINTÉM: libreto


Resumo da Ópera


Um estranho José Bonifácio chega à cidade de Santos no dia 13 de junho de 2013, no momento em que se celebra 250 anos de seu nascimento, em meio a um ensaio de espetáculo que será encenado no feriado da independência, em setembro. O evento sofre interferência de uma manifestação popular, que ocorre simultaneamente em várias partes do país, protestando contra o aumento de 20 centavos nas passagens de transporte público. José Bonifácio acompanha, perplexo, a situação política que o protesto desencadeia nos anos seguintes, e a compara com as consequências de evento semelhante conhecido como a Revolta do Vintém. Essa observação se desdobra em conjeturas sobre várias situações da realidade brasileira com que se defronta ou toma conhecimento.


 

Personagens


José Bonifácio

O Guarda-Livros

O Anjo do Guarda-Livros

O Banjo do Guada-Livros

O Alfaiate

Audite Nova

Nihil Ultra

ABZeh



 

Atos e Cenas


Abertura: TREM DE POUSO 


ATO I - 2013

Cena 01 - O Porto dos Andradas : Esperando José.

Cena 03 - Perante o Palácio




 

Texto



Abertura: TREM DE POUSO

A bordo de várias aeronaves, José Bonifácio faz sua tumultuada viagem de volta ao Brasil, em retorno do exílio.


JOSÉ BONIFÁCIO (com coro de tripulantes e passageiros):


TREM DE POUSO


Régua e compasso o Brasil me deu

Meu caminho eu traço, eu mesmo faço o meu

Quem sabe de mim, quem sabe enfim sou eu

Régua e compasso o Brasil me deu


Pelo mundo afora eu chego e vou embora

Pode ser agora ou a qualquer hora


Brasil, ame-o ou deixe-o

Brasil, ame-o ou deixe-o

Brasil, Brasil, ame-o ou deixe-o

Brasil, Brasil, ame-o ou deixe-o

O Brasil, Brasil, ame-o ou deixe-o

O Brasil, Brasil, ame-o ou deixe-o

O Brasil, ame-o ou deixe-o

O Brasil, ame-o ou deixe-o

O Brasil


Compasso, régua,

Sem trégua, traço

O meu caminho, faço,

Em cada passo

Dessa linha, o desenho

Do lugar de onde venho:

Brasil que amo,

Brasil que deixo,

Brasil, Brasil, Brasil.


Régua e compasso o Brasil me deu

Meu caminho eu traço eu mesmo faço o meu

Quem me conheceu, jamais me esqueceu

Régua e compasso o Brasil me deu


Pelo mundo eu voo

Nos céus de Paris

O Catorze-Bis

Venceu o Concorde

Rompeu num acorde

A barreira de sombra da Cidade-Luz

Bateu o recorde

De velocidade


E até aqui eu vim, eu vim

De Nova Iorque

No Espírito de São Luiz

E em Paris

Foi em Orly

Que aqui fiz

Meu debut


Sob o olhar dos senhores e das senhoras de Lisboa

O Lusitânea sobrevoa

Pilota-o outro Cabral

Num rasante voo da Fênix

Vai adiante

E chega até Fernando de Noronha

E ao Jequitinhonha

E sonha

Com o Pantanal

Avante

Sextante ao vento cortante

No São Francisco

Foge arisco do corisco

Faz pouso de risco

Manobra radical

Vai de bico

Até a foz do Velho Chico


Daí, rever-te em Roma,

Em Veneza desci

Nas águas do canal

De Roma eu parti

Direto pro Nepal

Via Ibéria, via Gália

Pra Sibéria e Austrália

No primeiro voo da Alitália


De uma lagoa azul

Voei pra Istambul

Num céu de anil

Cabul e Seul

Pros mares do sul

Pros céus do Brasil


Sutil

Como o bater de asa

Eu voo para casa

De volta ao Brasil.


O Rio de Janeiro, o Corcovado

Pão de Açúcar, Urca

Da Guanabara, baía da Guanabara

Na pista, perigo à vista!

É o Rio de Janeiro, o Corcovado

Pão de Açúcar, Urca

Da Guanabara, baía da Guanabara

Santos Dumont, Galeão (Copacabana, Leblon), Tom Jobim e o Jardim de Alá, JK


Ô Brasília, ai ai

Ô Brasília, ai, ai

Bem na hora de pousar

Não tem trem para baixar

Não tem trem, não, pra baixar.


Régua e compasso

Meu caminho eu traço

Pelo céu portenho

Risco o espaço

Sobre o obelisco

Faço o desenho

Da assombrosa excursão do samba

À Casa Rosada e o Alvorada.


Me empenho pra dizer

Desenho se não der pra entender


Ratatata Tata Te

Em Madrí e Pamplona

Ratatata Tata Be

E em Barcelona

Ratatata Tata O

Tebeo em Granada, em luta armada animada

Com balas de giz, com fuzis de grafite e mais nada

Bem na hora de pousar

Esse trem não vai baixar

Mas não desanime

Anime, que eu tenho o desenho


Como na história

Extraordinária

Anime o trem (ame e anime)

E pouse bem (crime ou regime)

Trem de aterragem, não tem sabotagem (nada te oprime)

Que me turve a imagem ou minha coragem (não te reprime)

Uma vitória (nem te deprime)

Imaginária


Tempo de voar e tempo de pousar

Já cansei de andar por tudo que é lugar

Já é hora de voltar para o meu lar

Voo à volta de Paris

Vou de volta aos meus Brasis

Faço um risco e

Um rabisco e

Vou de volta à raiz.


Ame-o ou deixe-o, abaixo o lema que não está nos meus gibis

Ame-o e anime-o, é o novo tema pra recriar o meu país

E se não tem o trem de pouso, a roda eu ouso reinventar

E nova história extraordinária vou desenhar.


Ame-o ou deixe-o

Veja, isto é o risco Brasil

Ame-o e anime-o

Risque e rabisque o Brasil

Ame-o e anime-o

O Brasil.



Pelo mundo eu voo, eu vou

Volto assim, volto pra mim, pra quem enfim eu sou



Em tempo de horror, arma de execução

Brasil, ame-o ou deixe-o

Em tempo de amar, alma de animação

Brasil, ame-o e anime-o

Tempo de voar, tempo de horror

Tempo de pousar, tempo de amor

Execução, arma de execução

Animação, alma de animação.



 


ATO I - 2013


Cena 01 - O Porto dos Andradas: Esperando José.


O Guarda-Livros aguarda a chegada de José Bonifácio ao Porto dos Andradas. Em frente ao terminal, escuta as recomendações do Anjo do Guarda-Livros.


O ANJO DO GUARDA-LIVROS (fala entoada e cadenciada):


Toma um cafezinho que há tempo até de sobra. O pouso da nave que traz o Andrada está em atraso. Parece que tem sido um voo bem errático. Um tumultuado retorno do exílio, com muitas escalas e conexões. Além de imprevistos operacionais, como o trem de pouso que falhou no porto previsto de chegada. Ô Brasília, ai, ai... Muita calma nessa hora.


O Guarda-Livros dirige-se ao cinema da praça (CINE INEX), em cujo interior há uma cafeteria: CAFÉINÊS.


O ANJO DO GUARDA-LIVROS (fala entoada e cadenciada):


Boa escolha essa, da cafeteria. Que tem conversa e tem cantoria. Toma um cafezinho, vai devagarinho. Tudo tem a sua vez, não queime a língua de cafeinês. Fim de outono, o inverno à porta, não tem coisa melhor. Tem também um bolo seco de fubá, com erva doce.


ABZeh (personagem enigmático, cantando e tocando violão a um canto da cafeteria) emenda a canção com o final da fala anterior do Anjo do Guarda-Livros:


DOCE D´OCÊ


Doce, a minha vida não seria

Doce, não vê?

Se não fosse você


Ocê, a doce vida que eu queria

Trouxe ocê

Doce como pavê


Ou se não fosse esse qual seria

Doce do quê?

Qual o doce d´ocê?


Fosse quem sabe doce de ambrosia

Doce do céu

O tal doce de mel


Doce, confeito dessa doceria

Sabe a ocê

Sabe só a ocê.



A canção traz à memória do Guarda-Livros uma época em que costumava tomar um chá da tarde na Confeitaria Colombo, toda vez que ia ao Rio de Janeiro. No conhecido ponto de encontro de elite da capital do Brasil, havia feito bons contatos com personagens dos circuitos artísticos da cidade. Ao terminar o café, após o último bocado do bolo de fubá, ele se dirige para a saída do cinema, passando pela Bilheteria, cuja cabine ostenta uma placa com os dizeres: BILHETES / LEMBRETES. A curadora do Paço Interno do cinema, Madame Pochette, do guichê da cabine, começa a cantar uma canção, à qual se mistura uma voz, em fala entoada, vinda de um ponto indefinido do recinto:


AMBROSIUS GARCEZ (fala entoada):


O único cinema que passava matinée todo dia era o Cine Paramount, que ficava no Largo do Rosário. Matinée com dois filmes. Minha mãe, que era cinemeira, ia sempre lá. Me pegava, a gente pegava o bonde, ia pra cidade, via lá dois filmes, depois a gente ia pra Confeitaria do Rosário, na Rua do Rosário, tomar chá com torradas de Petrópolis. Um amigo meu esteve no Rio, na Confeitaria Colombo, e conseguiu a receita dessa torrada.


MADAME POCHETTE canta, da cabine da bilheteria de CINE INEX:


FÜR BABETTE (Quase uma Linda Canção)


Chá das cinco

Com torradas de Petrópolis

Como como!

Como com mel,

Com geleia,

Com manteiga...

como.

Como muito, muito, muito, muito, muito, muito.

Como a amei

Como a amei com mel

Quase uma menina

Uma menina quase uma linda mulher

Uma menina tão linda, tão linda, tão linda, tão linda

Mulher.


O Guarda-Livros se detém próximo à porta de saída do cinema, antes de começar a descer os dois degraus que o separam do chão da praça.


ABZeh (personagem enigmático, cantando e tocando violão a um canto da cafeteria) emenda a canção com o final da fala anterior do Anjo do Guarda-Livros:


CULPA DA MAMÃE (intróito)


Um mero vintém foi a ruína

Do segundo imperador

Filho de Leopoldina

É o que disse o historiador

Essa história que se contou

Não foi o que rolou

Culpa da mamãe, foi

Culpa da mamãe

A mãe do monarca alguém chamou

Dama do Vintém, e o caos reinou

Foi culpa da mamãe, foi

Culpa da mamãe



Enquanto o Guarda-Livros desce ao chão da praça, um outro personagem assoma à porta de saída. É o Banjo do Guarda-Vilas, figura que muitos têm na conta do imaginário popular, crendice ou fantasia. Sobrenatural, alguns acham. Outros entendem que é uma espécie de duplo, projeção ou doppelgänger de ABeZeh. Ele permanece ali parado, observando o Guarda-Livros, que continua ainda esperando José Bonifácio. Percebendo que a espera iria ser prolongada, decide se retirar, indo em direção ao extremo oposto da praça, encaminhando-se para a alfaiataria Domínio do Fato.




O Alfaiate e Audite Nova, pela vitrine da loja Domínio do Fato, observam José Bonifácio e o Guarda-livros que, vindo do porto, caminham em direção ao Largo do Rosário, e decidem segui-los, intrigados com o exótico traje do primeiro.


ALFAIATE (olhando através da vitrine da alfaiataria Domínio do Fato):

- Ora, se não é... Venha ver!


AUDITE NOVA (aproximando-se):



Cena 03 - Perante o Palácio

 José Bonifácio e o Guarda-Livros chegam à Praça Mauá, observados à distância pelo Alfaiate e Audite Nova. Na Praça Mauá, em frente ao Paço Municipal, um grupo teatral vai começar um ensaio de uma encenação para celebrar, na data comemorativa da Independência do Brasil, os 250 anos da data de nascimento de José Bonifácio. Os atores e atrizes começam a cantar o tema musical do espetáculo:


PUXADORES DE SAMBA-ENREDO cantam o samba 13 DE JUNHO:


13 DE JUNHO


Dia 13 de junho

De um passado servil

Santos ergue o punho

Por um novo Brasil

É de Santos o cunho

De um tempo livre e feliz

É o fiel testemunho

Da história que diz

Esse é o dia em que nasce o

Grande prefácio

De um novo país


Esse dia agora é

É celebração

O que se comemora é

É a união

Todo povo na praça vem

Vem dançar, vem cantar

Com alegria e graça, vem

Vem de todo lugar

Vem perante o Palácio

José Bonifácio

Comemorar


O povo na praça

Com garra, com raça

Faz sua saudação

Dia 13 de junho

De cór, sem rascunho

Entoa a canção

De uma livre nação

O povo pede passagem

E presta homenagem

Ao homem que empresta

O nome ao Palácio

José Bonifácio.


O homem que empresta

O nome ao Palácio

José Bonifácio.

É o homem que empresta

O nome ao Palácio

José Bonifácio.



 





ZUMBI AFRONTA ZUMBI 

(na arena de Palmares)


Vive Zumbi dos Palmares

E segue

Por mais que turvem os ares

Em pó

Cinzas de humanos braseiros

E que um zumbi em Palmares

Renegue

E apague em novos mares

Sem dó

Velhos pavios negreiros


Era uma vez um zumbi

Ser amargo

Que afrontou o Zumbi

Em si

Na arena de Palmares

Foi-se de vez um zumbi

Ser amargo

Não aprontou o Zumbi

Em si

Na arena de Palmares



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